domingo, 24 de dezembro de 2017

Um Conto de Natal


Presépios

                                                                                                                  a Sandra & Silvana

Era muito antes do Natal que ela começava a preparação de seu presépio. Para mim, o fato de passar as festas de final de ano com eles era um acontecimento que precedia a própria chegada dos Reis Magos. Santo André era meu paraíso a menos de uma hora de trem partindo de São Paulo, mas um paraíso sem qualquer risco de pecados e cercado de gatos por todos os lados.
Virgínia mantinha seu costume tão constante quanto a tina de tremoços curtindo o sal do tempo em sua lavanderia. Não me recordo de novos personagens atuarem com o passar dos anos em seus presépios.
Reconhecia sempre os mesmos pastores, os mesmos animais ao redor da manjedoura emoldurada pelo papel de presente chapiscado numa textura de pedra com que ela montava a gruta, os infalíveis magos do oriente chegando cada dia mais próximos do menino deus e mais que tudo, o aroma inebriante de cipreste e coisas antigas que emanava daquela composição. Era o único destino que aqueles bibelôs conheciam, aquele eterno natal onde eles eram novamente o centro das atenções naquele canto de sala. Haveria algo além daquele cômodo?
O passado morava dentro de seu guarda-roupa. E meu presente morava logo abaixo, em outros presépios vivos onde estavam as fadas da minha infância: Vera, Sandra e Silvana.
Entrar naquela casa sempre representou para mim um portal de tudo aquilo que faltou na minha memória familiar. Foi ali que uma parte de minha genética tomou forma em determinado momento, aquelas paredes presenciaram coisas pelas quais eu nem sequer poderia ter saudade, ouviram vozes que o tempo silenciou como bordados guardados.
Bordei também minha felicidade naquele lugar de mistérios. Ouvi deles estórias que meu pai emudeceu para sempre em sua garganta selada de tristeza, de onde não saía sequer um vívido fantasma. Foi assim mesmo. Viveu o restante de sua vida assombrado por um palácio de silêncios que jamais ousaria quebrar em forma de um murmúrio que fosse.
Talvez com Virgínia e José ele falasse a respeito de muitas coisas. Mas diante de mim, na presença de meu pai todos se calavam. Ela, como todo espírito sábio de mulher sabe ser, adivinhava minhas dúvidas e me chamava muito discretamente para olhar aquele casaco de peles que ela mantinha como uma joia em seu quarto.
Eu acariciava aquela memória escondida como a última pista que eu tinha para o que um dia tocou o corpo de minha mãe. Tentei por várias vezes adivinhar-lhe algum perfume mas nada restava a não ser talvez o gosto de uma história que um dia evaporara quando lhe abriram o frasco.
Depois, Dona Virgínia me dizia para escolher alguma coisa que eu tivesse gostado no presépio. E é lógico que tudo aquilo que eu gostaria de ter ela não me daria de forma alguma! No fim das contas eu me contentava com algum anjinho de plástico anônimo que descobrira perdido naquela estória toda ou outra coisa qualquer, mesmo que fosse de uma esquina sem importância da árvore-de-natal, algo que não comprometesse o set tão seriamente ou que eu tivesse que negociar tanto quando a linda vaca preta e branca ou o cobiçado carneirinho desvalido que jamais conseguiria arrematar.
No calor maior da nossa barganha ela finalmente me distraía com um piscar de olhos e sugeria que eu fosse até a geladeira ver o que ela tinha feito para mim. E sempre havia um pudim de leite condensado sorrindo 360º para minha alegria – mas só depois do almoço!
Os gatos invadiam a cozinha e se escondiam embaixo da mesa, infalivelmente próximos da minha cadeira. Um olhar de meu pai, adivinhando todos os meus movimentos, bastava para que eu nem ousasse desperdiçar um pedaço sequer do frango passando-o furtivamente para o primeiro bichano de plantão. Comia nas carreiras deixando o quanto pudesse de carne no osso que atirava levianamente na base do ‘agora já foi mesmo’ para ouvir em seguida guinchos e miados vindos da disputa acirrada pelas sobras sob a mesa. Novos olhares sobre mim rosnavam verdes revanches. Mas Virgínia vinha sempre em meu socorro:
- Dáixa u pqueno pra lá, qui él goshta meshmo é dush gátsh!
E assim ela me tirava dos apuros recolhendo rapidamente as sobras dos outros pratos e me chamando para a entrada da casa quando o bater de um garfo no prato era a sina para surgirem gatos de todos os ângulos possíveis e imagináveis. Sôfregos! Contei uma vez vinte deles! De todas as cores e conteúdos! Devoravam tudo em minutos e sumiam como por feitiço, seguidos vorazes por seus respectivos rabos.
E eu, ainda que sem rabo, tratava de fazer o mesmo! Sumia correndo pela vila de casas com Virgínia de súbito me alertando:
- O pudín! A gente siishquiécél!
- Depois eu comoooo!

Então uma nova vida começava. Nas outras casas as pessoas ainda almoçavam. Talheres soavam irregulares na louça e não se ouvia muita conversa. Parecia um momento suspenso no ar, movido por tudo que de mais gratinado houvesse nesse mundo junto ao segredo cúmplice e infalível do molho de tomate e queijo parmesão partindo das cozinhas que davam acesso para a rua. Tudo cheirava tão bem. Eles cozinhavam coisas diferentes, iguarias que portugueses convencionais nunca ousariam em sua culinária.
Ficava ali fora adivinhando-lhes as mesas, esperando as meninas saírem preguiçosas, descascando laranjas perfumadas que dividiam comigo. A vida era simplesmente o alcance de um olhar para tudo voltar a ser feliz e a tarde ser uma promessa de sonhos que nenhum rei mago poderia adivinhar.
Sandra, Silvana e Vera. A ordem dos fatores nunca alteraria nossa fome adicional de chupar limões-cravo com sal roubado da mãe. Era o que fazíamos enquanto nas cozinhas todos ainda se ocupavam das mesas fartas.
Eu teria mais uma semana inteira com elas, até quando meu pai voltasse para o almoço de Ano Novo. Até lá a vida transcorria seus trilhos entre um acampamento de ciganos que eu improvisava nos varais de roupa onde coroava Silvana como a rainha do clã e shows de artistas célebres em que por encanto nos transformávamos após o jantar. Por ser a menor delas, Silvana era a única que atendia meus devaneios de teatro e figurinos convincentes que tirávamos do nada para transformar em tudo.
Como os pais trabalhassem, eram elas que tomavam conta dos afazeres domésticos, viviam atarefadas com toda ordem de obrigações e a casa respondia em brilhos por tanto zelo. Mas Sandra sempre nos surpreendia com algum doce de leite que fazia surgir como por milagre de uma pequena panela de alumínio. Nós também éramos presépios. Em nosso mundo de crianças era natal eternamente, ainda que fosse no lapso fugaz de uma semana.
Havia poesia ao redor daquelas meninas. Silvana cantava de repente, trechos de canções da época que sempre soavam como revelações maravilhosas vindas da alma de uma garota que nem completara ainda sete anos:
- Maaaaanhãã, no peito de um cantor...
...
Na plataforma da estação de Santo André as luzes amarelas incidiam sobre um longo assoalho de madeira no meio da escuridão. Era um outro palco, desta vez sem as fadas e suas estrelas despertando. No trem, os waffers que Virgínia me dava não conseguiam adoçar o coração já apertado de saudade. Nenhum outro lugar repetiu aquele cosmos! As estações eram contagem regressiva para a vida, que fez desde ali um sentido todo particular pela presença iluminada daquelas meninas.
Nos reencontramos mais de quarenta anos depois. Naquela tarde, Silvana assou um bolo de laranja sem mesmo saber que era meu favorito. Desta vez, elas me trouxeram até a estação para tomar o trem. Os calendários correram seus trilhos de ferro e fogo, nossas vidas tiveram seus próprios enredos e ainda que tudo à nossa volta tivesse mudado e mesmo virado pelo avesso algumas vezes, no fundo de todos nós, um parque de diversões ecoaria para sempre a inocência de nossa infância vitoriosa. Presépios que reverberam um universo.

                                                                             Akko, 25 Dezembro 2017