Presépios
a Sandra & Silvana
Era
muito antes do Natal que ela começava a preparação de seu
presépio. Para mim, o fato de passar as festas de final de ano com
eles era um acontecimento que precedia a própria chegada dos Reis
Magos. Santo André era meu paraíso a menos de uma hora de trem
partindo de São Paulo, mas um paraíso sem qualquer risco de pecados
e cercado de gatos por todos os lados.
Virgínia
mantinha seu costume tão constante quanto a tina de tremoços
curtindo o sal do tempo em sua lavanderia. Não me recordo de novos
personagens atuarem com o passar dos anos em seus presépios.
Reconhecia
sempre os mesmos pastores, os mesmos animais ao redor da manjedoura
emoldurada pelo papel de presente chapiscado numa textura de pedra
com que ela montava a gruta, os infalíveis magos do oriente chegando
cada dia mais próximos do menino deus e mais que tudo, o aroma
inebriante de cipreste e coisas antigas que emanava daquela
composição. Era o único destino que aqueles bibelôs conheciam,
aquele eterno natal onde eles eram novamente o centro das atenções
naquele canto de sala. Haveria algo além daquele cômodo?
O
passado morava dentro de seu guarda-roupa. E meu presente morava logo
abaixo, em outros presépios vivos onde estavam as fadas da minha
infância: Vera, Sandra e Silvana.
Entrar
naquela casa sempre representou para mim um portal de tudo aquilo que
faltou na minha memória familiar. Foi ali que uma parte de minha
genética tomou forma em determinado momento, aquelas paredes
presenciaram coisas pelas quais eu nem sequer poderia ter saudade,
ouviram vozes que o tempo silenciou como bordados guardados.
Bordei
também minha felicidade naquele lugar de mistérios. Ouvi deles
estórias que meu pai emudeceu para sempre em sua garganta selada de
tristeza, de onde não saía sequer um vívido fantasma. Foi assim
mesmo. Viveu o restante de sua vida assombrado por um palácio de
silêncios que jamais ousaria quebrar em forma de um murmúrio que
fosse.
Talvez
com Virgínia e José ele falasse a respeito de muitas coisas. Mas
diante de mim, na presença de meu pai todos se calavam. Ela, como
todo espírito sábio de mulher sabe ser, adivinhava minhas dúvidas
e me chamava muito discretamente para olhar aquele casaco de peles
que ela mantinha como uma joia em seu quarto.
Eu
acariciava aquela memória escondida como a última pista que eu
tinha para o que um dia tocou o corpo de minha mãe. Tentei por
várias vezes adivinhar-lhe algum perfume mas nada restava a não ser
talvez o gosto de uma história que um dia evaporara quando lhe
abriram o frasco.
Depois,
Dona Virgínia me dizia para escolher alguma coisa que eu tivesse
gostado no presépio. E é lógico que tudo aquilo que eu gostaria de
ter ela não me daria de forma alguma! No fim das contas eu me
contentava com algum anjinho de plástico anônimo que descobrira
perdido naquela estória toda ou outra coisa qualquer, mesmo que
fosse de uma esquina sem importância da árvore-de-natal, algo que
não comprometesse o set tão seriamente ou que eu tivesse que
negociar tanto quando a linda vaca preta e branca ou o cobiçado
carneirinho desvalido que jamais conseguiria arrematar.
No
calor maior da nossa barganha ela finalmente me distraía com um
piscar de olhos e sugeria que eu fosse até a geladeira ver o que ela
tinha feito para mim. E sempre havia um pudim de leite condensado
sorrindo 360º
para minha
alegria – mas só depois do almoço!
Os
gatos invadiam a cozinha e se escondiam embaixo da mesa,
infalivelmente próximos da minha cadeira. Um olhar de meu pai,
adivinhando todos os meus movimentos, bastava para que eu nem ousasse
desperdiçar um pedaço sequer do frango passando-o furtivamente para
o primeiro bichano de plantão. Comia nas carreiras deixando o quanto
pudesse de carne no osso que atirava levianamente na base do ‘agora
já foi mesmo’ para ouvir em seguida guinchos e miados vindos da
disputa acirrada pelas sobras sob a mesa. Novos olhares sobre mim
rosnavam verdes revanches. Mas Virgínia vinha sempre em meu socorro:
-
Dáixa u pqueno pra lá, qui él goshta meshmo é dush gátsh!
E
assim ela me tirava dos apuros recolhendo rapidamente as sobras dos
outros pratos e me chamando para a entrada da casa quando o bater de
um garfo no prato era a sina para surgirem gatos de todos os ângulos
possíveis e imagináveis. Sôfregos! Contei uma vez vinte deles! De
todas as cores e conteúdos! Devoravam tudo em minutos e sumiam como
por feitiço, seguidos vorazes por seus respectivos rabos.
E
eu, ainda que sem rabo, tratava de fazer o mesmo! Sumia correndo pela
vila de casas com Virgínia de súbito me alertando:
-
O pudín! A gente siishquiécél!
-
Depois eu comoooo!
Então
uma nova vida começava. Nas outras casas as pessoas ainda almoçavam.
Talheres soavam irregulares na louça e não se ouvia muita conversa.
Parecia um momento suspenso no ar, movido por tudo que de mais
gratinado houvesse nesse mundo junto ao segredo cúmplice e infalível
do molho de tomate e queijo parmesão partindo das cozinhas que davam
acesso para a rua. Tudo cheirava tão bem. Eles cozinhavam coisas
diferentes, iguarias que portugueses convencionais nunca ousariam em
sua culinária.
Ficava
ali fora adivinhando-lhes as mesas, esperando as meninas saírem
preguiçosas, descascando laranjas perfumadas que dividiam comigo. A
vida era simplesmente o alcance de um olhar para tudo voltar a ser
feliz e a tarde ser uma promessa de sonhos que nenhum rei mago
poderia adivinhar.
Sandra,
Silvana e Vera. A ordem dos fatores nunca alteraria nossa fome
adicional de chupar limões-cravo com sal roubado da mãe. Era o que
fazíamos enquanto nas cozinhas todos ainda se ocupavam das mesas
fartas.
Eu
teria mais uma semana inteira com elas, até quando meu pai voltasse
para o almoço de Ano Novo. Até lá a vida transcorria seus trilhos
entre um acampamento de ciganos que eu improvisava nos varais de
roupa onde coroava Silvana como a rainha do clã e shows de artistas
célebres em que por encanto nos transformávamos após o jantar. Por ser a menor
delas, Silvana era a única que atendia meus devaneios de teatro e
figurinos convincentes que tirávamos do nada para transformar em tudo.
Como
os pais trabalhassem, eram elas que tomavam conta dos afazeres
domésticos, viviam atarefadas com toda ordem de obrigações e a
casa respondia em brilhos por tanto zelo. Mas Sandra sempre nos
surpreendia com algum doce de leite que fazia surgir como por milagre
de uma pequena panela de alumínio. Nós também éramos presépios.
Em nosso mundo de crianças era natal eternamente, ainda que fosse no
lapso fugaz de uma semana.
Havia
poesia ao redor daquelas meninas. Silvana cantava de repente, trechos
de canções da época que sempre soavam como revelações
maravilhosas vindas da alma de uma garota que nem completara ainda
sete anos:
-
Maaaaanhãã, no peito de um cantor...
...
Na
plataforma da estação de Santo André as luzes amarelas incidiam
sobre um longo assoalho de madeira no meio da escuridão. Era um
outro palco, desta vez sem as fadas e suas estrelas despertando. No
trem, os waffers que Virgínia me dava não conseguiam adoçar o
coração já apertado de saudade. Nenhum outro lugar repetiu aquele
cosmos! As estações eram contagem regressiva para a vida, que fez
desde ali um sentido todo particular pela presença iluminada
daquelas meninas.
Nos
reencontramos mais de quarenta anos depois. Naquela tarde, Silvana
assou um bolo de laranja sem mesmo saber que era meu favorito. Desta vez, elas me trouxeram até a estação para tomar o trem. Os
calendários correram seus trilhos de ferro e fogo, nossas vidas tiveram seus próprios enredos e
ainda que tudo à nossa volta tivesse mudado e mesmo virado pelo
avesso algumas vezes, no fundo de todos nós, um parque de diversões
ecoaria para sempre a inocência de nossa infância vitoriosa.
Presépios que reverberam um universo.
Akko, 25 Dezembro 2017