terça-feira, 16 de março de 2021

A última lição de Música

 

A última lição de Música


De qual região da Itália a senhora é mesmo, Nona?

- Puglia, nascida na cidade de Lecce, no salto da bota! Vim de uma família proprietária. Diferente do velho farabuto, que nasceu numa oficina mecânica e lá deveria ter ficado! Mas agora me dê um cigarro!

Eram assim nossas conversas. Ela nos faria rir contando estórias ludibriantes com o único intuito de surrupiar um cigarro que fumaria escondido da filha e de todos os que frequentavam aquele Centro Espírita. Ai daquele que não satisfizesse seus desejos! Grunhiria pragas em seu dialeto, fuzilando em nossa direção o olhar enfezado de um loro perigoso. Mas no fundo, Dona Ana era puro afeto.

Guardei por muito tempo na carteira um bilhete que escreveu com tinta cor-de-rosa numa grafia elegante de artista nata que ela era. Nele, ela me desejava uma vida plena de alegria e poesia, o que me tocou profundamente. Certa vez eu falei um poema que escrevera e sua reação me deixou surpreso. Ela percebeu minha verve e talvez nem tenha compreendido o sentido louco daquilo tudo. Quando terminei, me olhou preocupada e arrematou:

- Mas isso não pode se perder!

Todos queriam agradá-la. Como ela mesma dizia, era moderna! Fotos suas de adolescente mostravam uma menina alegre, vestida num uniforme de marinheiro e… de calças compridas, uma afronta para a época! Única adepta de cigarros na família, sabia que causava sensação ao fumar em frente às visitas frequentes que a filha recebia. Chegou mesmo a nos dizer um dia, quando a nicotina ainda não fora contra indicada pelos médicos:

- Então, que estilo! – devem pensar todos eles – a velha fumando!

Parcimoniosa, não distribuía sorrisos fáceis e parecia mesmo odiar o velho Gino Leuzzi, que aparecia naquela casa apenas para fazer as refeições e sumir na primeira chance que tivesse, embrenhando-se pela vida como o aventureiro boa pinta que sempre fora. Enquanto ele sorvia a sopa compenetrado, ela nos olharia buscando cúmplices para logo depois apontar o nariz em sua direção fazendo uma careta de desdém.

Gino viveu na Etiópia durante a juventude e foi mecânico particular de Hailé Selassié. Dessa parte de sua vida, sua maior aventura era se vangloriar de serviços íntimos prestados a ninguém mais que a própria esposa do imperador. Será que aquilo foi mesmo verdade? Deve ter sido um homem lindíssimo quando jovem, considerando-se o carisma e a beleza que ainda possuía já em idade avançada.

O fato é que quando retornou à Itália, já tinha seu burro amarrado à sombra e um Citroen que causava furor e inveja na cidade inteira. Ainda assim, tratou logo de abrir sua própria oficina e permaneceu torcendo suas ferramentas em todos os bordéis de Lecce, dia sim, outro também!

E tudo mudou em sua vida numa certa manhã de outono quando por acaso estacionou o carro em frente a uma escola e viu o destino cruzar seu Citroen na forma de uma menina sorridente que passou cantarolando uma ária de Puccini.

...

Era cronometrado. Três minutos após soar o sino para o recreio da Escola Municipal, o Professor Schordatto vinha até a janela de seu estúdio e espiava calmamente pela transparência da cortina. Inevitavelmente as meninas pulavam a pequena mureta na mesma ordem. Primeiro Maria Pia, depois Simonetta e finalmente, sempre ajeitando o imenso laço de seda no alto da cabeça, surgia Ana, rindo alto como se prestes a praticar alguma aventura completamente inédita.

Atravessariam então a pequena rua, atentas ao movimento ainda reduzido dos poucos carros e das charretes, abririam o portão que dava acesso ao pequeno jardim de Francesca e chamariam juntas:

- Um, dois, três! Professor Schordatto!!!

O velho professor abria a porta cauteloso, apenas uma fresta, para avistar então três pares frescos de olhares atentos checando seu humor naquela manhã num conhecido uníssono que se repetia todos os dias:

- Bom dia, Professor Schordatto!

- Bom dia! O que querem as senhoritas a estas horas da manhã?

Um desapontamento criava um clima de suspense entre elas e Ana, a mais diplomática delas, seria incondicionalmente a primeira a trazer o motivo daquela frenética visita.

- Professor Schordatto, ainda não ficou claro para nós aquela passagem do coro que aprendemos segunda-feira na aula de Música!

- Ana! Mas isso foi ontem!!! Esperem até a próxima segunda-feira porque então ensaiaremos melhor e em grupo com toda a classe!

E assim ele fazia menção de fechar a porta mas sem decididamente terminar sua ação dissimulada, num teatro que só ele era capaz de desempenhar com tamanha destreza. E Ana então tomava a frente, já com a mão apoiada no batente, para com voz assertiva dizer docemente, naqueles seus encantos de sereia de rio:

- Professor Schordatto, entenda, nós queremos ser as melhores cantoras da classe e por isso decidimos vir até sua casa para adiantar tudo e assim tornar sua próxima aula magna um grande acontecimento!

Isso derretia o coração do Professor Schordatto como nada mais tinha o poder de persuadi-lo.

- Ana, carina!!! Entrem, entrem! Francesca está na cozinha preparando biscotti para esta tarde, mas eu penso que já devem até estar prontos!

Era a senha para que Simonetta se esgueirasse pela sala direto para o calor da cozinha de Francesca, como um gato que apenas esperasse sua vez quando a porta se abrisse um pouco mais, dando passagem para a voracidade de seu menu matutino em plena casa do vizinho.

Assim, ficariam Maria Pia e Ana no estúdio enquanto entre duas baforadas de seu charuto e um pigarro, o Professor perguntaria esboçando num sorriso ensaiado:

- Qual era mesmo a cançoneta que trabalhamos ontem?

- A ária de Mimi, Professor!

- Ah! Esta! Sim. E de que ópera é, Ana?

- Professor Schordatto, agora não estou lembrando bem o nome da ópera, mas sei que é Giacomo Puccini!

- Perfeito, Ana! La Bohème!

- Isso, Professor Schordatto! Estava esquecida!

E enquanto o professor dirigia-se à estante, buscando no aparador o velho violino, seu filho Giuseppe apareceria à porta sem mesmo que ele percebesse e faria um sinal para Maria Pia. Assim, os dois adolescentes desapareceriam no quintal nos fundos da casa saindo por uma lateral sem passar pela cozinha de Francesca, atarefada com o almoço e a presença de Simonetta que descascava batatas para, já devidamente paramentada num avental muito maior do que ela.

- Mas preste atenção, Simoneta! Do jeito que você descasca eu perco metade do tubérculo! Mais fino, bem mais fino!

Na sala atulhada de partituras e livros, o improvisado estúdio, apenas Ana e o Professor Schordatto permaneciam agora.

- Mas onde está Maria Pia, Ana?

- Professor, também não percebi quando ela desapareceu! Eu estava pensando em lhe perguntar sobre os versos finais da ária de Mimi.

- Mas, Ana, ainda não chegamos lá.

- Sim, Professor Schordatto. É que ontem, já em casa antes do jantar, eu folheei o libreto e encontrei um trecho que não pude compreender.

- Então, qual é sua dúvida?

- Por que Mimi está tão contente com o sol que invade sua janela se nem mesmo tem o que comer? ‘Il primo bacio dell’aprille è mio’ Como pode desfrutar a poesia do sol quando a barriga ronca de tanta fome?

- Ah! Esta é uma grande questão, bambina! Guarda! O mundo está feito de escolhas. Por que é que Simoneta prefere ficar beliscando coisas na cozinha e Maria Pia fazendo sabe-se lá o quê com Pepino naquele quintal? O que lhe parece?

- Professor Schordatto, a mim parece que fizeram a escolha errada! Eu, de minha parte, prefiro ficar aqui no estúdio aprendendo com o senhor os segredos do bel canto.

E aqui Ana respondeu ruborizando levemente, porque ela e Simonetta sabiam muito bem das peripécias de Maria Pia e Pepino naqueles poucos minutos que o intervalo do recreio permitia. Um dia, ao pularem a mureta voltando para a escola, Ana percebeu que Maria Pia estava sem nada por baixo da saia do uniforme. Pepino colecionava as calcinhas da menina metendo-as nos bolsos do macacão, não dando tempo para que ela as encontrasse, afoita que estava para partir dali correndo, esbaforida pela intransigência do sino que tocava.

- Os segredos do bel canto… Infelizmente a vida tem muitos e maiores segredos que o bel canto, minha pequena!

Os olhos de Ana faiscavam curiosos diante da presença sábia daquele professor que para ela sabia tudo o que se passava no vasto mundo. Ele abria o estojo do violino e retirando-o, afinava uma corda casualmente, olhando para Ana e sorrindo esferas por trás dos óculos. Ela, sentada como uma princesa na poltrona de veludo, ajeitava o laço de seda no cabelo liso. A saia xadrez minuciosamente espraiada no assento, como uma flor que desabrochasse no tecido da manhã.

- Ana Bela! O que você vai ser quando crescer?

- Cantora, Professor Schordatto! Uma grande artista!

- Cantora? Está segura disso?

- Tão segura quanto estas paredes, Professor Schordatto!

E para a mulher que adentrava o estúdio, seguida como uma sombra menor por Simonetta, trazendo uma bandeja com café fumegante e biscottis perfumados, ele disse:

- Franca, essa menina promete!

Olhando ao redor da sala, Francesca deu pela falta de Maria Pia e pediu que Simonetta fosse chamá-la.

- Mas Schordatto, não há uma única vez que esses dois não se percam - e sabe-se lá por quais motivos - na bagunça generalizada daquele quintal. Parece que têm uma cola ou um magneto e que não se desgrudam! É como dizia meu nono, ‘Se Ciccio não me toca, toca-me, Ciccio!’

Entram correndo pela sala Maria Pia e Simoneta. Ana observa astutamente. Corre os olhos furtivos por Francesca e o Professor Schordatto para adivinhar se eles suspeitam de alguma coisa. Mas ambos dirigem-se à mesa atulhada de partituras onde Francesca estacionou numa esquina a bandeja com seus biscoitos frescos. Nem sinal de Giuseppe aparecer.

- Vem, Ana, prove um biscotti que fiz agora mesmo!

Com um suspiro em seus entreatos, Ana levantou-se e molhou um biscotti no café preto da pequena xícara que Francesca lhe estendera.

- Uma delícia Senhora Francesca! Uma iguaria como só se encontra mesmo em Milano ou Firenze!

- Ana, o cadarço de seu sapato está desamarrado! Não vá você tropeçar e cair!

A menina abaixou-se para atar seu sapato perto de Maria Pia, não sem antes levantar levemente a saia da amiga, esta entretida agora com os quitutes de Francesca, e constatar mordaz e obviamente, que mais uma vez ela estava sem calcinha!

Ao saírem, aturdidas pelo chamar do sino que indicava o final do recreio, Ana puxou Maria Pia pelas tranças antes de atravessarem a rua e sibilou, ríspida e congelada feito uma medusa:

- Maria Pia, sua desgraçada farabuta, você vai terminar arruinando minha carreira artística que tanto promete!

Do outro lado, estacionado sobre o meio fio, um Citroen preto ocultava o olhar atento de um mecânico loiro e enorme que observou enlevado as três meninas cruzando a frente de seu veículo entre risos e fábulas. Sua malícia animal continha a mesma delicadeza dos alicates! Ana foi a única das três a perceber seu faro. E ali mesmo, entre partituras e notas dispersas, selou-se o destino final de sua triunfal carreira no bel canto que tanto prometia.





terça-feira, 24 de novembro de 2020

Akko, Novembro 2020

 


Acontece algumas vezes. Fugaz, um barquinho cruza o mar emoldurado na janela. Velas e vento. E a lembrança do berimbau de João Gilberto traz consigo sua presença naquele retiro em Ein Gedi, com o singrar daquele pequeno barquinho que vimos ali certas manhãs, anjo inédito, ser tão atípico para tanto sal ao redor. Nele, o Mar Morto ressuscitava para a próxima cena da Paixão, onde nosso Jesus interior só precisava mesmo era de um banquinho e um violão.

E dias depois, ouvir João Gilberto em plena Istambul, na varanda daquele pequeno hotel em Sultanahmet no horário da oração da tarde, quando todas as mesquitas da cidade reverberam consecutivamente o canto plural de centenas de muezins chamando para a unidade da reza... era como voltar para dentro deixando portas abertas e janelas escancaradas para o sol que entrava junto. Istambul é um sonho de mil e uma noites para despertar… A alma ascende como um obelisco voltando para Deus.

Permaneci meses desenhando pássaros e cavalos a grafite e não tinha meios ou veias de trazer cores ao papel. Observei o lento processo em preto e branco e não tive pressa para adiantar nada do que porventura desejasse em seus matizes.

E recentemente me encantei por desenhar e colorir pequenos barcos e canoas, algo que antes jamais me chamara a atenção. Tenho planos de fazer uma série de aquarelas com temas que estejam próximos de mim, como a cidade velha vista da ponte que liga Akko à grande rodovia e cenas do morro das pedras numa praia aqui perto.

Tenho feito alguns estudos em aquarela almejando mais transparência nas aguadas, algo que nunca experimentei. Isso exige mais rapidez e liberdade no pincel. Mas liberdade requer maestria, paciência e coragem para ousar. E resulta também, sem qualquer conclusão fechada, do acordo com a obra feliz e o voluntário acaso dos pigmentos.

Fiz mais um retrato do rosto de Ahmed com crayon vermelho. Mas está para ser finalizado. De alguma forma, desenhar e pintar têm sido meu mastro neste momento. Ouvi Milton Hatoum dizer numa entrevista um dia desses que ‘somente a arte tem o poder de recriar o mundo’. E acredito que transformar este momento turvo é tudo o que podemos almejar, além de ser uma estratégia tentadora que me parece mais do que legítima.

O contato com qualquer forma de arte ensina companheirismo e compreensão sobre esses ritmos involuntários que se erguem por entre as frestas para logo depois construírem alicerces que num certo momento nos darão, cúmplices, mãos irmãs para outros passos mais sólidos. Só então o espírito repousa sorrindo no colo morno e materno de Deus, sem ponteiros, sem relógios! E os astrolábios beijam um céu sem medidas nem fronteiras!

Por isso a arte deve ser respirada em conjunto. Jamais cometida. Edu Natureza agradecia a Krishna depois de escrever um poema. Ele também não tinha pressa. Ainda assim, tomou seu trem para a eternidade muito cedo e deixou o eco de seus versos soando esparsos no coração apertado daqueles que o amaram tanto. Há grandeza e amplitude nesses anonimatos. Sua poesia, que permaneceu inédita para os holofotes, edificou pirâmides na vida e no sentir dos que o conheceram mais de perto. Esgarçada pelo musgo das pedras e pelo limo do tempo, sua voz negra e arquibela ainda canta em sopranos aqui dentro:


É por isso que eu sou o que não foi convidado,

o pássaro da aldeia sobrevoando essa densa nuvem de malícia.”

E.N.


A poesia por seu turno permanece em ebulição constante. E ainda que não olhe diretamente para ela procurando temas ou formas, é seu eterno estado que me acompanha em silêncio ininterrupto. Os muezins também se calam para viver a resignação do sabor sagrado e mudo das palavras. E de tabela continuo exercitando minha escrita, seja escrevendo cartas que levo dias para terminar ou repensando mudanças no longo arquivo de poesia que lentamente reviso.

Uma amiga postou por esses dias algumas fotos de Emaús, aquele lugar onde segundo a tradição cristã, Jesus encontrou dois de seus discípulos após sua ressurreição. A princípio eles não o reconheceram na estrada e somente à mesa, depois de lhe oferecerem hospedagem, vislumbraram sua presença clarividente quando ele partiu o pão. Seria o código de uma escola? O compartilhar é um milagre na multiplicação de compreensões.

Coincidentemente, ‘Emaús’ foi o último poema que revisei recentemente em minha coletânea. Lembra dele? Faz referência àquela noite em 2006 quando caminhamos da colina de minha casa em Oregon House até a entrada da propriedade onde você se encontraria com os estudantes que lhe dariam carona do vinhedo até o aeroporto em Sacramento.

A bateia do tempo preserva e revela suas memórias em gemas preciosas que continuam se multiplicando também, assim como a profusão de estrelas naquela outra noite, quando paramos para olhar um céu chapiscado delas como jamais presenciaria outra vez em minha vida, nem mesmo dormindo ao relento em plena lua nova no deserto de Wadi Rum.

Nesta última sexta-feira, depois de um intervalo de treze anos, cozinhei um borsch para nós. Mas acrescentei, moídos, kümel, pimenta jamaica, cominho, louro e pimenta do reino, ingredientes que não faziam parte da receita original que Olga me ensinou em Apollo. Excelente. Uma colher de creme de leite azedo dá o toque final.

O mar tão perto e sua visão magnífica de todos os dias são a afirmação em amplitudes de que desde sempre tudo esteve muito bem desenhado e escrito. Escrevi tanto sobre o mar que às vezes penso que esse canto louco de sereia me trouxe afinal para junto dele, netuno de mil cores irreproduzíveis revelando a claridade e a transformação contidas em sua virtude de reflexo da luz imparcial do céu.


Deus ao mar o perigo e abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.”

Fernando Pessoa


Tocar de perto tudo o que andei escrevendo ao longo de trinta e um anos de produção reunida traz um sabor indelével de algo que sempre me acompanhou e que a seu modo reflete um inverso de abismos e vãos refletindo um céu como resposta.

O fato é que depois da minha mudança para Israel minha poesia amadureceu e tomou a direção estética que seu destino deveria cumprir. Sou grato às facas e ao fogo que cozinharam nas entrelinhas minha ingenuidade e vagabundagem de poeta inevitável.

Se eu não escrevesse minha vida teria sido um erro. Mas por outro lado nunca procurei ganhar meu pão nesses acertos. E não é o que pretendo. Estou apenas cumprindo o que há, assim como nutrir o talento para o desenho me ensina a olhar para tudo com maior acuidade e alerta, mas aqui por um deleite puramente pessoal, sem nenhum sentimento de missão imprescindível.

E finalmente, acredito de pés juntos que todos esses eventos terminam se entrelaçando, formando uma grande rede onde tudo está intrínseco, influenciando-se mutuamente. O plural sorridente da unidade? Talvez. O fato é que uma experiência enriquece a outra incondicionalmente. A nós fica reservada a aventura de construirmos essas pontes e fazer a travessia, amparados nesses alicerces que se interligam fundindo a existência dessas raízes aéreas num único e mesmo suspiro. A vida é tênue.

Todo meu Amor. Infinitamente. C.


Emaús



Quem são estes dois homens caminhando pela estrada?

Levam bagagens no escuro mas parecem

voar pela noite sob um céu de mil estrelas.


Quem são estes dois homens como duas rimas

percorrendo a estrada como num poema?

Para onde vão nesta madrugada?

Pássaros noturnos transportando o dia,

conversando vivamente como se não dormissem jamais.


A pista é estreita e eles continuam amplos.

O tempo é contado e eles sorriem mistérios.

Nenhuma dimensão confunde

seus passos precisos que vão para onde.


Preciosas pegadas ficarão quando o dia amanhecer.


Outros perguntarão:

- De quem são essas marcas que algumas vezes se mesclam

e parecem ser apenas uma?

Como dois versos rimando ao longo da estrada

dizem que vão para dentro,

vindos de uma jornada ao longo do dia.

Enquanto isso a lua amarela

beija o lago frio da madrugada

e deles, não se sabe quem vai ou quem fica.


Ainda que duas asas jamais se encontrem

elas pertencem ao mesmo voo

e fazem voar o mesmo pássaro



quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Ladrão de Bonecas

Eu brincava de bonecas. Nenhuma que fosse oficialmente minha. Márcia ganhava muitas como presente de natal, aniversário, dia das crianças, notas escolares excelentes ou qualquer outro motivo que houvesse. Dona Helena era fada madrinha infalível. Não tardou para que logo, ainda muito criança, Márcia amealhasse uma verdadeira coleção delas.

Para meu desconcerto e desventura, uma boneca linda e loira chegou numa caixa verde logo após uma operação de amídalas e assim mesmo, refém lacrada pelo celofane da clausura, foi assim mesmo, rapunzel condenada, sem direito sequer a julgamento, mesmo que de mentirinha, para o degredo em cima do guarda-roupa, onde viveu vida de brinquedo recluso até que as tranças do destino me fizeram roubá-la do quarto escuro numa noite de castigo.

O grande móvel recendia a alvaiades de uma limpeza imaculada quando aberto, a casa de Tia Neusa sendo tão impecável quanto o enxoval de uma freira.

Quando acenderam a luz, eu era mãe imediata chorando dilúvios. Inventei que a boneca pedira para ser batizada e eu brincava de ser padre a quem ninguém poderia infligir nenhuma pena, pelo menos até que a cerimônia terminasse.

Sem indulgência alguma levei logo dois piparotes e me safei de um terceiro quando saí correndo vila afora, perseguido ainda pela matilha dos cachorros que nada sabiam senão escapar à primeira menção de um álibi quando lhes fosse apresentado.

Todas as bonecas alforriadas permaneciam sob a televisão. E Cláudia, nome recebido por meus sacramentos de faz-de-conta, ganhou então seu lugar entre dois ursos e pelúcias que não pude ver por um bom tempo, proibido por um mês de voltar ali.

Subi até a laje de minha casa dias depois. Dali eu avistava a casa de Márcia ao longe, num pálido azul ao sol desbotando seu anil de entardecer. Minha laje continha mundos de versos livres. Uma construção inacabada permanecera nos tijolos, sem batentes nas portas ou divisão própria de cômodos. Sentei-me numa das muretas e do alto dos meus nove anos de idade, olhando a vila de casas, escrevi meu primeiro poema: Márcia.

Seus olhos são marrons’

É o único verso do qual me lembro, talvez porque fui corrigido na cor. E ler a poesia inteira para Tia Neusa foi meu indulto de sagacidade para voltar a brincar com Márcia e continuar fazendo a voz de todas as bonecas, num teatro que a própria televisão acima não tinha paródias de vencer. Foi nesse aparelho que num belo dia assisti em êxtase Caetano Veloso cantando ‘Alegria, alegria’ num festival da TV Record.

Mas naquele interregno entre a vigília e o sono, comprara num armarinho próximo uma pequena boneca de plástico que ganhou depois aposentos mobiliados no móvel da grande rádio-vitrola que pertencera à minha mãe e sucumbira ao seu naufrágio de silêncio no decorrer da viuvez de meu pai. Assim, Márcia praticamente abandonou sua coleção de bonecas e começou a passar as tardes comigo por causa daquele pequeno teatrinho que começara a se formar.

Aquela rádio-vitrola, dentro de outro contexto não muito remoto, já servira até como átrio de igreja para casamento de pregadores de madeira quebrados e que saíam dali unidos para sempre diante das caixas acústicas que ficavam bem ao centro divididas por três colunas de madeira tratadas a óleo de peroba. Duas portas laterais daquilo que seria um arquivo para discos serviam agora para guardar apetrechos. Na porta da direita preparei um apartamento para Gina, auxiliado por caixas de fósforos empilhadas, mesas de centro e um lindo lustre que nunca resolvi direito e vez por outra caía tragicamente nos bonecos envolvidos.

Gina não tinha profissão definida mas teve direito até a governanta japonesa na figura de Sara, um aposentado bibelô de madeira discretíssimo que era apaixonada por um oco astronauta de plástico e que teve inclusive seus dias de missão espacial, dependurado numa barraca de feira livre, recheado de confeitos minúsculos de chocolate vagabundo, vertiginosamente despejados no lixo da vizinha no mesmo dia em que foi comprado para não dar B.O.

E é lógico que pela praticidade do tamanho e interesses por aquele enredo todo que tirei de não-sei-onde, Gina transformou-se, a despeito de suas origens suburbanas e meros 13 cm, em nossa boneca favorita. Era fácil criar seu guarda roupa com pequenos retalhos que encontrávamos ao acaso no quarto de costura da avó de Márcia que às vezes conferia meu trabalho de cerzir devolvendo depois a peça minúscula e olhando para mim através das lentes dos óculos, reforçando em seguida com um esgar acima da armação e que eu interpretava como o Lobo Mau já disfarçado conferindo a sobremesa. Eu, hein!?

Apesar das diferenças de DNA, todos conviviam democraticamente até que a hospitalidade da anfitriã esbarrou na borracha de um coelho chamado Dudu a quem ela considerou desde o início nada menos que um caipira atrevido de comportamento extremamente duvidoso.

Ele fora encontrado num quintal de Santo André, enterrado próximo aos tanques de lavar roupa, vítima talvez de algum crime ancestral que durou sabe-se lá quantos anos e deixou sua epiderme coberta por pigmentos pretos. Era um clone do Pernalonga, ainda que negasse qualquer vínvulo empregatício ou ligação com a Warner Bros. Mas depois de um molho por dois dias na água sanitária, seguindo recomendações severas de Sandra, o coelho ressucitou do balde com a alvura de um anjo extraterrestre e começou a partir dali mesmo sua carreira estratosférica de artista de televisão. Pintei-lhe um par de olhos azuis permanentes com caneta esferográfica Bic e ele voltou a enxergar o mundo com a voracidade de um navegador português.

Autoritário, vaidoso ao extremo e até meio viado, Dudu ganhou para sempre o coração de Márcia, que conversava com ele num misto de devoção e maternidade. Ele era capaz de fazê-la raspar o fundo do prato mesmo que a refeição fosse intragável. Assim, ele ganhou de imediato a simpatia de Tia Neusa e começou a ser convidado imprescindível em viagens de férias, festas e é claro: almoços intermináveis que ele agora orquestrava com a habilidade de um prestidigitador, dublado agora por ninguém menos que as barganhas gastronômicas de Tia Neusa.

Na verdade Dudu não passava de um cafajeste que alegava dentre outras coisas ser o verdadeiro Topo Gigio e amigo íntimo de várias estrelas de cinema da época, afirmando ele mesmo estar envolvido na produção de uma película que jamais se realizou.

Naquele momento eu cumpria o papel de ventríloquo internacional envolvido na parafernália de sotaques simultâneos a que me submetia treinando meu repertório de mentiras. A má educação carcamana e o estrelismo exacerbado de Dudu eram ponderados pela fala tímida e polida da doce Sara, a quem ele fazia de camareira de suas cenas improváveis, já que ninguém mais se predispunha a papéis secundários naquela algazarra. Além do mais, como no caos não há protagonistas, o trabalho maior estava realmente em sustentar a carga dos bastidores sem qualquer prejuízo para a audiência!

É irônico e me pergunto sempre como foi possível que aquele coelho mambembe, cujas origens arqueológicas estavam mais próximas do exílio de uma múmia egípcia que de um brinquedo de verdade, tivesse de repente todos os holofotes voltados para si podendo até mesmo usurpar os aposentos de Gina como se fosse seu real proprietário.

A baderna durou seu tempo de espetáculo até que a vida de todos nós resolveu seu teatro instável em outras realidades bem menos pitorescas.

Quando fui embora para o seminário em Araraquara passei na casa de Tia Neusa para me despedir de Márcia. O feijão de Tia Neusa era o melhor de todos e persegui seu sabor minha vida inteira sem mastigar devidamente aquele passado que agora aposentava todos os brinquedos proletários e esquecia definitivamente o glamour daquela coleção de bonecas que jamais abdicaram da condenação de seu pedestal inalcançável.

Sob o iceberg da televisão desligada em preto e branco, cúmplice mordaz de todas as fantasias, estas coloridas já há muito tempo, o coelho sorria incisivamente do nosso destino, feito um mestre de cerimônias que soubesse todos os truques de mágica, inclusive os que ainda estavam pelo avesso, resolvendo a estória de trás pra frente, por dentro da ingenuidade das nossas cartolas.  



segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Cemitério Judeu Abandonado




O Cemitério Judeu Abandonado


Zona Norte de São Paulo. A Avenida Imirim prolonga-se num ganges interminável cortando dezenas de bairros. Em quilômetros de ironia, o destino quis que ela começasse depois do Cemitério de Santana, inaugurado em 1897 e terminasse antes de outro, o de Vila Nova Cachoeirinha.
Em 1926, um grupo de mulheres, a Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita, comprou um grande lote de terreno na necrópole de Santana para inaugurar ali um Cemitério Israelita, separado do outro por um muro e com entrada principal pela Rua Nova dos Portugueses.
Guinendel Lubinsk e Lola Brand, membros daquela sociedade falecidas em 1922 e 1924 antes da inauguração em 24 de maio de 1928, foram sepultadas no Cemitério da Consolação e nas lápides de seus túmulos, custeados por duas amigas, lê-se a mesma inscrição em hebraico: “Deseja-se que sua alma não seja mais encarnada”.




Encimada em seu domo por uma estrela de seis pontas, havia uma capela naquele cemitério judaico, já praticamente abandonado quando o conheci. O sentimento de um tempo perdido para sempre permeava a ferrugem de seu portão principal permanentemente fechado. Era como um segredo que no bairro ninguém contava porque não sabia.
Nunca vi ninguém ali, fosse colocando flores ou mesmo algum jardineiro cortando o mato que invadia então as pequenas alamedas encharcadas de silêncio.
Minha avó portuguesa, com quem ia com frequência ao outro cemitério cristão, era a única com idade e conhecimento que poderia me dizer alguma coisa. Mas ela também de nada sabia. Quando perguntada a respeito, sua única resposta era: ‘É dos judeus.’
Havia outro portão que dava acesso àquele recanto de mistérios por onde passávamos quando ela ia a outros sepulcros de pessoas que conhecera, o que nem sempre fazia. Era algo que até evitava quando estava comigo, pois incondicionalmente eu pediria a ela que entrássemos ali.
-’Mas o que é que você quer fazer aí dentro, menino? Você por acaso conhece alguém que foi enterrado aí?’
-’Eu só queria ver como é...’
Por alguns segundos ela concordava e parava sob alguma sombra que a protegesse do sol escaldante e me deixava espiar pelas grades enquanto ela se abanava num luto interminável que molhava suas roupas negras.
Sempre era um assombro para mim... Lápides intrigantes sem nenhuma cruz sobre elas, um espaço relativamente pequeno repleto de ciprestes. Pouco mais de duzentas pessoas foram sepultadas naquele espaço onde reinava uma paz diferente, emudecida por muitos gritos que jamais se calaram. A capela no centro erguia-se como um forte, derrotado e calado de orações. Um cadeado grande lacrava uma velha corrente enferrujada de sonhos antigos. Que chaves desvendariam tantos segredos? Tudo era triste e desolado.
-’Chega! Vamos embora que vai cair um temporal!’
Minhas questões não eram respondidas. Caminhávamos sob seu guarda-chuva de mãos dadas. Relâmpagos riscavam o céu negro atrás dos muros...
- ‘Mas por que eles têm um cemitério só deles e não vêm colocar flores?’
- ‘Não pise nas poças de água que depois não há quem tire essa lama!’
Quando passávamos diante do portão principal, já na nossa rua, eu via a chuva luzindo os mármores negros e sentia medo. Talvez fosse isso o que mais me atraía, o medo daquilo que nunca conheci.
Alguns anos depois, voltei da escola fazendo um percurso mais longo para um curto pecado e entrei de propósito no cemitério judaico.
Abandonado, sua capela era então utilizada como vestiário pelos funcionários da outra necrópole e o portão interno ficava aberto.
Era uma conquista silenciosa entrar naquele lugar proibido, selado desde sempre; estar perto daquelas lápides que vi distantes por tanto tempo não trazia respostas. Havia inscrições num idioma desconhecido e diferente, sem fotografias que identificassem os mortos, frutos secos e ramos de ciprestes caídos sobre algumas tumbas formavam um tapete de uma nostalgia perdida cuja história ninguém adivinharia.
Copiei algumas daquelas letras num dos meus cadernos. Sem que eu soubesse, aquela foi a minha primeira lição do alfabeto semítico. Voltei ali mais algumas vezes, por teimosia e curiosidade, sem qualquer medo de que alguma pessoa me visse. Meu sentimento era sempre o mesmo diante de um enigma que ninguém sabia decifrar. Por que tanta negligência?
Tomado de coragem, numa tarde de inspirada ousadia, entrei naquela capela sombria e fui tomado então de um pavor fatídico: vi seu interior completamente imundo, paredes mofadas e janelas lacradas, um cheiro forte de urina e pelo chão, fezes ressequidas de pombos que ali acharam abrigo em alguns nichos.
O estado profanado de um espaço que algum dia talvez até tivesse desfrutado de alguma santidade, criou em mim um misto de indignação e remorso, uma culpa pelo que não era. Como o abandono podia pisotear com o passar do tempo aquilo que teve um início tão diferente? Houve decerto um princípio onde tudo era novo e digno. Em que ponto tudo se perdera? Onde estavam as pessoas que tinham os seus entes queridos enterrados ali naqueles túmulos de mármore tão preciosos, tão esquecidos? Teriam morrido também?
Assim, eu ficava ali até que um sentimento de medo fosse tomando conta de mim e me fizesse fugir de forma apressada e sem razão, um visitante no mínimo insano e desastrado, é isso o que fui!
No mesmo ano em que saí da capital para estudar num seminário no interior de São Paulo, o cemitério judeu foi definitivamente desapropriado por conta de total abandono. A antiga Sociedade Beneficente não existia mais porque suas fundadoras agora estavam ali também, vítimas do mesmo desterro, despejadas no além-túmulo.
Sonhei com cemitérios a vida toda. E depois de um certo momento eram lugares em que evitava entrar. E nesses sonhos sempre havia coisas a fazer, obrigações que nunca estavam claras. Mas tinha que cumpri-las. E nada ficou pela metade.
Mas persistiu a lembrança daquele lugar abandonado que incitou tanto minha fantasia e meus medos infundados, repleto de ciprestes empoeirados apontando o mesmo céu que sempre me sorriu cúmplice a tantas tempestades que cometi.
Nas aulas de hebraico em Jerusalém, após anos de muitos temporais, a silhueta da capela era como um sino de saudade. Procurei no google alguma referência e uma noite pasmei com algumas pistas e respostas que me aturdiram. E achei uma imagem sinistra da capela, já em seus últimos dias de ruína.
As Polacas, prostitutas judias que chegaram a São Paulo no início do século XIX organizaram-se e obtiveram a concessão para serem enterradas de acordo com sua religião naquele lugar que não as excluiria, como as necrópoles judaicas oficiais e ortodoxas. O mesmo aconteceu em Cubatão e no Rio de Janeiro.
É nas Polacas que eu penso quando vejo qualquer cemitério em Israel, uma âncora que o destino delas não conheceu, um porto onde suas rotas não atracaram jamais. A elas foi concedido o direito de permanecerem invisíveis, esquecidas entre a fumaça e a malícia de uma moral estúpida que elas reverteram em sedas e volúpia, santas putas de um mundo imbecil que não vale delas nem o elástico de uma liga!