segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Cemitério Judeu Abandonado




O Cemitério Judeu Abandonado


Zona Norte de São Paulo. A Avenida Imirim prolonga-se num ganges interminável cortando dezenas de bairros. Em quilômetros de ironia, o destino quis que ela começasse depois do Cemitério de Santana, inaugurado em 1897 e terminasse antes de outro, o de Vila Nova Cachoeirinha.
Em 1926, um grupo de mulheres, a Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita, comprou um grande lote de terreno na necrópole de Santana para inaugurar ali um Cemitério Israelita, separado do outro por um muro e com entrada principal pela Rua Nova dos Portugueses.
Guinendel Lubinsk e Lola Brand, membros daquela sociedade falecidas em 1922 e 1924 antes da inauguração em 24 de maio de 1928, foram sepultadas no Cemitério da Consolação e nas lápides de seus túmulos, custeados por duas amigas, lê-se a mesma inscrição em hebraico: “Deseja-se que sua alma não seja mais encarnada”.




Encimada em seu domo por uma estrela de seis pontas, havia uma capela naquele cemitério judaico, já praticamente abandonado quando o conheci. O sentimento de um tempo perdido para sempre permeava a ferrugem de seu portão principal permanentemente fechado. Era como um segredo que no bairro ninguém contava porque não sabia.
Nunca vi ninguém ali, fosse colocando flores ou mesmo algum jardineiro cortando o mato que invadia então as pequenas alamedas encharcadas de silêncio.
Minha avó portuguesa, com quem ia com frequência ao outro cemitério cristão, era a única com idade e conhecimento que poderia me dizer alguma coisa. Mas ela também de nada sabia. Quando perguntada a respeito, sua única resposta era: ‘É dos judeus.’
Havia outro portão que dava acesso àquele recanto de mistérios por onde passávamos quando ela ia a outros sepulcros de pessoas que conhecera, o que nem sempre fazia. Era algo que até evitava quando estava comigo, pois incondicionalmente eu pediria a ela que entrássemos ali.
-’Mas o que é que você quer fazer aí dentro, menino? Você por acaso conhece alguém que foi enterrado aí?’
-’Eu só queria ver como é...’
Por alguns segundos ela concordava e parava sob alguma sombra que a protegesse do sol escaldante e me deixava espiar pelas grades enquanto ela se abanava num luto interminável que molhava suas roupas negras.
Sempre era um assombro para mim... Lápides intrigantes sem nenhuma cruz sobre elas, um espaço relativamente pequeno repleto de ciprestes. Pouco mais de duzentas pessoas foram sepultadas naquele espaço onde reinava uma paz diferente, emudecida por muitos gritos que jamais se calaram. A capela no centro erguia-se como um forte, derrotado e calado de orações. Um cadeado grande lacrava uma velha corrente enferrujada de sonhos antigos. Que chaves desvendariam tantos segredos? Tudo era triste e desolado.
-’Chega! Vamos embora que vai cair um temporal!’
Minhas questões não eram respondidas. Caminhávamos sob seu guarda-chuva de mãos dadas. Relâmpagos riscavam o céu negro atrás dos muros...
- ‘Mas por que eles têm um cemitério só deles e não vêm colocar flores?’
- ‘Não pise nas poças de água que depois não há quem tire essa lama!’
Quando passávamos diante do portão principal, já na nossa rua, eu via a chuva luzindo os mármores negros e sentia medo. Talvez fosse isso o que mais me atraía, o medo daquilo que nunca conheci.
Alguns anos depois, voltei da escola fazendo um percurso mais longo para um curto pecado e entrei de propósito no cemitério judaico.
Abandonado, sua capela era então utilizada como vestiário pelos funcionários da outra necrópole e o portão interno ficava aberto.
Era uma conquista silenciosa entrar naquele lugar proibido, selado desde sempre; estar perto daquelas lápides que vi distantes por tanto tempo não trazia respostas. Havia inscrições num idioma desconhecido e diferente, sem fotografias que identificassem os mortos, frutos secos e ramos de ciprestes caídos sobre algumas tumbas formavam um tapete de uma nostalgia perdida cuja história ninguém adivinharia.
Copiei algumas daquelas letras num dos meus cadernos. Sem que eu soubesse, aquela foi a minha primeira lição do alfabeto semítico. Voltei ali mais algumas vezes, por teimosia e curiosidade, sem qualquer medo de que alguma pessoa me visse. Meu sentimento era sempre o mesmo diante de um enigma que ninguém sabia decifrar. Por que tanta negligência?
Tomado de coragem, numa tarde de inspirada ousadia, entrei naquela capela sombria e fui tomado então de um pavor fatídico: vi seu interior completamente imundo, paredes mofadas e janelas lacradas, um cheiro forte de urina e pelo chão, fezes ressequidas de pombos que ali acharam abrigo em alguns nichos.
O estado profanado de um espaço que algum dia talvez até tivesse desfrutado de alguma santidade, criou em mim um misto de indignação e remorso, uma culpa pelo que não era. Como o abandono podia pisotear com o passar do tempo aquilo que teve um início tão diferente? Houve decerto um princípio onde tudo era novo e digno. Em que ponto tudo se perdera? Onde estavam as pessoas que tinham os seus entes queridos enterrados ali naqueles túmulos de mármore tão preciosos, tão esquecidos? Teriam morrido também?
Assim, eu ficava ali até que um sentimento de medo fosse tomando conta de mim e me fizesse fugir de forma apressada e sem razão, um visitante no mínimo insano e desastrado, é isso o que fui!
No mesmo ano em que saí da capital para estudar num seminário no interior de São Paulo, o cemitério judeu foi definitivamente desapropriado por conta de total abandono. A antiga Sociedade Beneficente não existia mais porque suas fundadoras agora estavam ali também, vítimas do mesmo desterro, despejadas no além-túmulo.
Sonhei com cemitérios a vida toda. E depois de um certo momento eram lugares em que evitava entrar. E nesses sonhos sempre havia coisas a fazer, obrigações que nunca estavam claras. Mas tinha que cumpri-las. E nada ficou pela metade.
Mas persistiu a lembrança daquele lugar abandonado que incitou tanto minha fantasia e meus medos infundados, repleto de ciprestes empoeirados apontando o mesmo céu que sempre me sorriu cúmplice a tantas tempestades que cometi.
Nas aulas de hebraico em Jerusalém, após anos de muitos temporais, a silhueta da capela era como um sino de saudade. Procurei no google alguma referência e uma noite pasmei com algumas pistas e respostas que me aturdiram. E achei uma imagem sinistra da capela, já em seus últimos dias de ruína.
As Polacas, prostitutas judias que chegaram a São Paulo no início do século XIX organizaram-se e obtiveram a concessão para serem enterradas de acordo com sua religião naquele lugar que não as excluiria, como as necrópoles judaicas oficiais e ortodoxas. O mesmo aconteceu em Cubatão e no Rio de Janeiro.
É nas Polacas que eu penso quando vejo qualquer cemitério em Israel, uma âncora que o destino delas não conheceu, um porto onde suas rotas não atracaram jamais. A elas foi concedido o direito de permanecerem invisíveis, esquecidas entre a fumaça e a malícia de uma moral estúpida que elas reverteram em sedas e volúpia, santas putas de um mundo imbecil que não vale delas nem o elástico de uma liga!





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