quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Ladrão de Bonecas

Eu brincava de bonecas. Nenhuma que fosse oficialmente minha. Márcia ganhava muitas como presente de natal, aniversário, dia das crianças, notas escolares excelentes ou qualquer outro motivo que houvesse. Dona Helena era fada madrinha infalível. Não tardou para que logo, ainda muito criança, Márcia amealhasse uma verdadeira coleção delas.

Para meu desconcerto e desventura, uma boneca linda e loira chegou numa caixa verde logo após uma operação de amídalas e assim mesmo, refém lacrada pelo celofane da clausura, foi assim mesmo, rapunzel condenada, sem direito sequer a julgamento, mesmo que de mentirinha, para o degredo em cima do guarda-roupa, onde viveu vida de brinquedo recluso até que as tranças do destino me fizeram roubá-la do quarto escuro numa noite de castigo.

O grande móvel recendia a alvaiades de uma limpeza imaculada quando aberto, a casa de Tia Neusa sendo tão impecável quanto o enxoval de uma freira.

Quando acenderam a luz, eu era mãe imediata chorando dilúvios. Inventei que a boneca pedira para ser batizada e eu brincava de ser padre a quem ninguém poderia infligir nenhuma pena, pelo menos até que a cerimônia terminasse.

Sem indulgência alguma levei logo dois piparotes e me safei de um terceiro quando saí correndo vila afora, perseguido ainda pela matilha dos cachorros que nada sabiam senão escapar à primeira menção de um álibi quando lhes fosse apresentado.

Todas as bonecas alforriadas permaneciam sob a televisão. E Cláudia, nome recebido por meus sacramentos de faz-de-conta, ganhou então seu lugar entre dois ursos e pelúcias que não pude ver por um bom tempo, proibido por um mês de voltar ali.

Subi até a laje de minha casa dias depois. Dali eu avistava a casa de Márcia ao longe, num pálido azul ao sol desbotando seu anil de entardecer. Minha laje continha mundos de versos livres. Uma construção inacabada permanecera nos tijolos, sem batentes nas portas ou divisão própria de cômodos. Sentei-me numa das muretas e do alto dos meus nove anos de idade, olhando a vila de casas, escrevi meu primeiro poema: Márcia.

Seus olhos são marrons’

É o único verso do qual me lembro, talvez porque fui corrigido na cor. E ler a poesia inteira para Tia Neusa foi meu indulto de sagacidade para voltar a brincar com Márcia e continuar fazendo a voz de todas as bonecas, num teatro que a própria televisão acima não tinha paródias de vencer. Foi nesse aparelho que num belo dia assisti em êxtase Caetano Veloso cantando ‘Alegria, alegria’ num festival da TV Record.

Mas naquele interregno entre a vigília e o sono, comprara num armarinho próximo uma pequena boneca de plástico que ganhou depois aposentos mobiliados no móvel da grande rádio-vitrola que pertencera à minha mãe e sucumbira ao seu naufrágio de silêncio no decorrer da viuvez de meu pai. Assim, Márcia praticamente abandonou sua coleção de bonecas e começou a passar as tardes comigo por causa daquele pequeno teatrinho que começara a se formar.

Aquela rádio-vitrola, dentro de outro contexto não muito remoto, já servira até como átrio de igreja para casamento de pregadores de madeira quebrados e que saíam dali unidos para sempre diante das caixas acústicas que ficavam bem ao centro divididas por três colunas de madeira tratadas a óleo de peroba. Duas portas laterais daquilo que seria um arquivo para discos serviam agora para guardar apetrechos. Na porta da direita preparei um apartamento para Gina, auxiliado por caixas de fósforos empilhadas, mesas de centro e um lindo lustre que nunca resolvi direito e vez por outra caía tragicamente nos bonecos envolvidos.

Gina não tinha profissão definida mas teve direito até a governanta japonesa na figura de Sara, um aposentado bibelô de madeira discretíssimo que era apaixonada por um oco astronauta de plástico e que teve inclusive seus dias de missão espacial, dependurado numa barraca de feira livre, recheado de confeitos minúsculos de chocolate vagabundo, vertiginosamente despejados no lixo da vizinha no mesmo dia em que foi comprado para não dar B.O.

E é lógico que pela praticidade do tamanho e interesses por aquele enredo todo que tirei de não-sei-onde, Gina transformou-se, a despeito de suas origens suburbanas e meros 13 cm, em nossa boneca favorita. Era fácil criar seu guarda roupa com pequenos retalhos que encontrávamos ao acaso no quarto de costura da avó de Márcia que às vezes conferia meu trabalho de cerzir devolvendo depois a peça minúscula e olhando para mim através das lentes dos óculos, reforçando em seguida com um esgar acima da armação e que eu interpretava como o Lobo Mau já disfarçado conferindo a sobremesa. Eu, hein!?

Apesar das diferenças de DNA, todos conviviam democraticamente até que a hospitalidade da anfitriã esbarrou na borracha de um coelho chamado Dudu a quem ela considerou desde o início nada menos que um caipira atrevido de comportamento extremamente duvidoso.

Ele fora encontrado num quintal de Santo André, enterrado próximo aos tanques de lavar roupa, vítima talvez de algum crime ancestral que durou sabe-se lá quantos anos e deixou sua epiderme coberta por pigmentos pretos. Era um clone do Pernalonga, ainda que negasse qualquer vínvulo empregatício ou ligação com a Warner Bros. Mas depois de um molho por dois dias na água sanitária, seguindo recomendações severas de Sandra, o coelho ressucitou do balde com a alvura de um anjo extraterrestre e começou a partir dali mesmo sua carreira estratosférica de artista de televisão. Pintei-lhe um par de olhos azuis permanentes com caneta esferográfica Bic e ele voltou a enxergar o mundo com a voracidade de um navegador português.

Autoritário, vaidoso ao extremo e até meio viado, Dudu ganhou para sempre o coração de Márcia, que conversava com ele num misto de devoção e maternidade. Ele era capaz de fazê-la raspar o fundo do prato mesmo que a refeição fosse intragável. Assim, ele ganhou de imediato a simpatia de Tia Neusa e começou a ser convidado imprescindível em viagens de férias, festas e é claro: almoços intermináveis que ele agora orquestrava com a habilidade de um prestidigitador, dublado agora por ninguém menos que as barganhas gastronômicas de Tia Neusa.

Na verdade Dudu não passava de um cafajeste que alegava dentre outras coisas ser o verdadeiro Topo Gigio e amigo íntimo de várias estrelas de cinema da época, afirmando ele mesmo estar envolvido na produção de uma película que jamais se realizou.

Naquele momento eu cumpria o papel de ventríloquo internacional envolvido na parafernália de sotaques simultâneos a que me submetia treinando meu repertório de mentiras. A má educação carcamana e o estrelismo exacerbado de Dudu eram ponderados pela fala tímida e polida da doce Sara, a quem ele fazia de camareira de suas cenas improváveis, já que ninguém mais se predispunha a papéis secundários naquela algazarra. Além do mais, como no caos não há protagonistas, o trabalho maior estava realmente em sustentar a carga dos bastidores sem qualquer prejuízo para a audiência!

É irônico e me pergunto sempre como foi possível que aquele coelho mambembe, cujas origens arqueológicas estavam mais próximas do exílio de uma múmia egípcia que de um brinquedo de verdade, tivesse de repente todos os holofotes voltados para si podendo até mesmo usurpar os aposentos de Gina como se fosse seu real proprietário.

A baderna durou seu tempo de espetáculo até que a vida de todos nós resolveu seu teatro instável em outras realidades bem menos pitorescas.

Quando fui embora para o seminário em Araraquara passei na casa de Tia Neusa para me despedir de Márcia. O feijão de Tia Neusa era o melhor de todos e persegui seu sabor minha vida inteira sem mastigar devidamente aquele passado que agora aposentava todos os brinquedos proletários e esquecia definitivamente o glamour daquela coleção de bonecas que jamais abdicaram da condenação de seu pedestal inalcançável.

Sob o iceberg da televisão desligada em preto e branco, cúmplice mordaz de todas as fantasias, estas coloridas já há muito tempo, o coelho sorria incisivamente do nosso destino, feito um mestre de cerimônias que soubesse todos os truques de mágica, inclusive os que ainda estavam pelo avesso, resolvendo a estória de trás pra frente, por dentro da ingenuidade das nossas cartolas.