Acontece algumas vezes. Fugaz, um barquinho cruza o mar emoldurado na janela. Velas e vento. E a lembrança do berimbau de João Gilberto traz consigo sua presença naquele retiro em Ein Gedi, com o singrar daquele pequeno barquinho que vimos ali certas manhãs, anjo inédito, ser tão atípico para tanto sal ao redor. Nele, o Mar Morto ressuscitava para a próxima cena da Paixão, onde nosso Jesus interior só precisava mesmo era de um banquinho e um violão.
E dias depois, ouvir João Gilberto em plena Istambul, na varanda daquele pequeno hotel em Sultanahmet no horário da oração da tarde, quando todas as mesquitas da cidade reverberam consecutivamente o canto plural de centenas de muezins chamando para a unidade da reza... era como voltar para dentro deixando portas abertas e janelas escancaradas para o sol que entrava junto. Istambul é um sonho de mil e uma noites para despertar… A alma ascende como um obelisco voltando para Deus.
Permaneci meses desenhando pássaros e cavalos a grafite e não tinha meios ou veias de trazer cores ao papel. Observei o lento processo em preto e branco e não tive pressa para adiantar nada do que porventura desejasse em seus matizes.
E recentemente me encantei por desenhar e colorir pequenos barcos e canoas, algo que antes jamais me chamara a atenção. Tenho planos de fazer uma série de aquarelas com temas que estejam próximos de mim, como a cidade velha vista da ponte que liga Akko à grande rodovia e cenas do morro das pedras numa praia aqui perto.
Tenho feito alguns estudos em aquarela almejando mais transparência nas aguadas, algo que nunca experimentei. Isso exige mais rapidez e liberdade no pincel. Mas liberdade requer maestria, paciência e coragem para ousar. E resulta também, sem qualquer conclusão fechada, do acordo com a obra feliz e o voluntário acaso dos pigmentos.
Fiz mais um retrato do rosto de Ahmed com crayon vermelho. Mas está para ser finalizado. De alguma forma, desenhar e pintar têm sido meu mastro neste momento. Ouvi Milton Hatoum dizer numa entrevista um dia desses que ‘somente a arte tem o poder de recriar o mundo’. E acredito que transformar este momento turvo é tudo o que podemos almejar, além de ser uma estratégia tentadora que me parece mais do que legítima.
O contato com qualquer forma de arte ensina companheirismo e compreensão sobre esses ritmos involuntários que se erguem por entre as frestas para logo depois construírem alicerces que num certo momento nos darão, cúmplices, mãos irmãs para outros passos mais sólidos. Só então o espírito repousa sorrindo no colo morno e materno de Deus, sem ponteiros, sem relógios! E os astrolábios beijam um céu sem medidas nem fronteiras!
Por isso a arte deve ser respirada em conjunto. Jamais cometida. Edu Natureza agradecia a Krishna depois de escrever um poema. Ele também não tinha pressa. Ainda assim, tomou seu trem para a eternidade muito cedo e deixou o eco de seus versos soando esparsos no coração apertado daqueles que o amaram tanto. Há grandeza e amplitude nesses anonimatos. Sua poesia, que permaneceu inédita para os holofotes, edificou pirâmides na vida e no sentir dos que o conheceram mais de perto. Esgarçada pelo musgo das pedras e pelo limo do tempo, sua voz negra e arquibela ainda canta em sopranos aqui dentro:
“É por isso que eu sou o que não foi convidado,
o pássaro da aldeia sobrevoando essa densa nuvem de malícia.”
E.N.
A poesia por seu turno permanece em ebulição constante. E ainda que não olhe diretamente para ela procurando temas ou formas, é seu eterno estado que me acompanha em silêncio ininterrupto. Os muezins também se calam para viver a resignação do sabor sagrado e mudo das palavras. E de tabela continuo exercitando minha escrita, seja escrevendo cartas que levo dias para terminar ou repensando mudanças no longo arquivo de poesia que lentamente reviso.
Uma amiga postou por esses dias algumas fotos de Emaús, aquele lugar onde segundo a tradição cristã, Jesus encontrou dois de seus discípulos após sua ressurreição. A princípio eles não o reconheceram na estrada e somente à mesa, depois de lhe oferecerem hospedagem, vislumbraram sua presença clarividente quando ele partiu o pão. Seria o código de uma escola? O compartilhar é um milagre na multiplicação de compreensões.
Coincidentemente, ‘Emaús’ foi o último poema que revisei recentemente em minha coletânea. Lembra dele? Faz referência àquela noite em 2006 quando caminhamos da colina de minha casa em Oregon House até a entrada da propriedade onde você se encontraria com os estudantes que lhe dariam carona do vinhedo até o aeroporto em Sacramento.
A bateia do tempo preserva e revela suas memórias em gemas preciosas que continuam se multiplicando também, assim como a profusão de estrelas naquela outra noite, quando paramos para olhar um céu chapiscado delas como jamais presenciaria outra vez em minha vida, nem mesmo dormindo ao relento em plena lua nova no deserto de Wadi Rum.
Nesta última sexta-feira, depois de um intervalo de treze anos, cozinhei um borsch para nós. Mas acrescentei, moídos, kümel, pimenta jamaica, cominho, louro e pimenta do reino, ingredientes que não faziam parte da receita original que Olga me ensinou em Apollo. Excelente. Uma colher de creme de leite azedo dá o toque final.
O mar tão perto e sua visão magnífica de todos os dias são a afirmação em amplitudes de que desde sempre tudo esteve muito bem desenhado e escrito. Escrevi tanto sobre o mar que às vezes penso que esse canto louco de sereia me trouxe afinal para junto dele, netuno de mil cores irreproduzíveis revelando a claridade e a transformação contidas em sua virtude de reflexo da luz imparcial do céu.
“Deus ao mar o perigo e abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
Fernando Pessoa
Tocar de perto tudo o que andei escrevendo ao longo de trinta e um anos de produção reunida traz um sabor indelével de algo que sempre me acompanhou e que a seu modo reflete um inverso de abismos e vãos refletindo um céu como resposta.
O fato é que depois da minha mudança para Israel minha poesia amadureceu e tomou a direção estética que seu destino deveria cumprir. Sou grato às facas e ao fogo que cozinharam nas entrelinhas minha ingenuidade e vagabundagem de poeta inevitável.
Se eu não escrevesse minha vida teria sido um erro. Mas por outro lado nunca procurei ganhar meu pão nesses acertos. E não é o que pretendo. Estou apenas cumprindo o que há, assim como nutrir o talento para o desenho me ensina a olhar para tudo com maior acuidade e alerta, mas aqui por um deleite puramente pessoal, sem nenhum sentimento de missão imprescindível.
E finalmente, acredito de pés juntos que todos esses eventos terminam se entrelaçando, formando uma grande rede onde tudo está intrínseco, influenciando-se mutuamente. O plural sorridente da unidade? Talvez. O fato é que uma experiência enriquece a outra incondicionalmente. A nós fica reservada a aventura de construirmos essas pontes e fazer a travessia, amparados nesses alicerces que se interligam fundindo a existência dessas raízes aéreas num único e mesmo suspiro. A vida é tênue.
Todo meu Amor. Infinitamente. C.
Emaús
Quem são estes dois homens caminhando pela estrada?
Levam bagagens no escuro mas parecem
voar pela noite sob um céu de mil estrelas.
Quem são estes dois homens como duas rimas
percorrendo a estrada como num poema?
Para onde vão nesta madrugada?
Pássaros noturnos transportando o dia,
conversando vivamente como se não dormissem jamais.
A pista é estreita e eles continuam amplos.
O tempo é contado e eles sorriem mistérios.
Nenhuma dimensão confunde
seus passos precisos que vão para onde.
Preciosas pegadas ficarão quando o dia amanhecer.
Outros perguntarão:
- De quem são essas marcas que algumas vezes se mesclam
e parecem ser apenas uma?
Como dois versos rimando ao longo da estrada
dizem que vão para dentro,
vindos de uma jornada ao longo do dia.
Enquanto isso a lua amarela
beija o lago frio da madrugada
e deles, não se sabe quem vai ou quem fica.
Ainda que duas asas jamais se encontrem
elas pertencem ao mesmo voo
e fazem voar o mesmo pássaro