A última lição de Música
De qual região da Itália a senhora é mesmo, Nona?
- Puglia, nascida na cidade de Lecce, no salto da bota! Vim de uma família proprietária. Diferente do velho farabuto, que nasceu numa oficina mecânica e lá deveria ter ficado! Mas agora me dê um cigarro!
Eram assim nossas conversas. Ela nos faria rir contando estórias ludibriantes com o único intuito de surrupiar um cigarro que fumaria escondido da filha e de todos os que frequentavam aquele Centro Espírita. Ai daquele que não satisfizesse seus desejos! Grunhiria pragas em seu dialeto, fuzilando em nossa direção o olhar enfezado de um loro perigoso. Mas no fundo, Dona Ana era puro afeto.
Guardei por muito tempo na carteira um bilhete que escreveu com tinta cor-de-rosa numa grafia elegante de artista nata que ela era. Nele, ela me desejava uma vida plena de alegria e poesia, o que me tocou profundamente. Certa vez eu falei um poema que escrevera e sua reação me deixou surpreso. Ela percebeu minha verve e talvez nem tenha compreendido o sentido louco daquilo tudo. Quando terminei, me olhou preocupada e arrematou:
- Mas isso não pode se perder!
Todos queriam agradá-la. Como ela mesma dizia, era moderna! Fotos suas de adolescente mostravam uma menina alegre, vestida num uniforme de marinheiro e… de calças compridas, uma afronta para a época! Única adepta de cigarros na família, sabia que causava sensação ao fumar em frente às visitas frequentes que a filha recebia. Chegou mesmo a nos dizer um dia, quando a nicotina ainda não fora contra indicada pelos médicos:
- Então, que estilo! – devem pensar todos eles – a velha fumando!
Parcimoniosa, não distribuía sorrisos fáceis e parecia mesmo odiar o velho Gino Leuzzi, que aparecia naquela casa apenas para fazer as refeições e sumir na primeira chance que tivesse, embrenhando-se pela vida como o aventureiro boa pinta que sempre fora. Enquanto ele sorvia a sopa compenetrado, ela nos olharia buscando cúmplices para logo depois apontar o nariz em sua direção fazendo uma careta de desdém.
Gino viveu na Etiópia durante a juventude e foi mecânico particular de Hailé Selassié. Dessa parte de sua vida, sua maior aventura era se vangloriar de serviços íntimos prestados a ninguém mais que a própria esposa do imperador. Será que aquilo foi mesmo verdade? Deve ter sido um homem lindíssimo quando jovem, considerando-se o carisma e a beleza que ainda possuía já em idade avançada.
O fato é que quando retornou à Itália, já tinha seu burro amarrado à sombra e um Citroen que causava furor e inveja na cidade inteira. Ainda assim, tratou logo de abrir sua própria oficina e permaneceu torcendo suas ferramentas em todos os bordéis de Lecce, dia sim, outro também!
E tudo mudou em sua vida numa certa manhã de outono quando por acaso estacionou o carro em frente a uma escola e viu o destino cruzar seu Citroen na forma de uma menina sorridente que passou cantarolando uma ária de Puccini.
...
Era cronometrado. Três minutos após soar o sino para o recreio da Escola Municipal, o Professor Schordatto vinha até a janela de seu estúdio e espiava calmamente pela transparência da cortina. Inevitavelmente as meninas pulavam a pequena mureta na mesma ordem. Primeiro Maria Pia, depois Simonetta e finalmente, sempre ajeitando o imenso laço de seda no alto da cabeça, surgia Ana, rindo alto como se prestes a praticar alguma aventura completamente inédita.
Atravessariam então a pequena rua, atentas ao movimento ainda reduzido dos poucos carros e das charretes, abririam o portão que dava acesso ao pequeno jardim de Francesca e chamariam juntas:
- Um, dois, três! Professor Schordatto!!!
O velho professor abria a porta cauteloso, apenas uma fresta, para avistar então três pares frescos de olhares atentos checando seu humor naquela manhã num conhecido uníssono que se repetia todos os dias:
- Bom dia, Professor Schordatto!
- Bom dia! O que querem as senhoritas a estas horas da manhã?
Um desapontamento criava um clima de suspense entre elas e Ana, a mais diplomática delas, seria incondicionalmente a primeira a trazer o motivo daquela frenética visita.
- Professor Schordatto, ainda não ficou claro para nós aquela passagem do coro que aprendemos segunda-feira na aula de Música!
- Ana! Mas isso foi ontem!!! Esperem até a próxima segunda-feira porque então ensaiaremos melhor e em grupo com toda a classe!
E assim ele fazia menção de fechar a porta mas sem decididamente terminar sua ação dissimulada, num teatro que só ele era capaz de desempenhar com tamanha destreza. E Ana então tomava a frente, já com a mão apoiada no batente, para com voz assertiva dizer docemente, naqueles seus encantos de sereia de rio:
- Professor Schordatto, entenda, nós queremos ser as melhores cantoras da classe e por isso decidimos vir até sua casa para adiantar tudo e assim tornar sua próxima aula magna um grande acontecimento!
Isso derretia o coração do Professor Schordatto como nada mais tinha o poder de persuadi-lo.
- Ana, carina!!! Entrem, entrem! Francesca está na cozinha preparando biscotti para esta tarde, mas eu penso que já devem até estar prontos!
Era a senha para que Simonetta se esgueirasse pela sala direto para o calor da cozinha de Francesca, como um gato que apenas esperasse sua vez quando a porta se abrisse um pouco mais, dando passagem para a voracidade de seu menu matutino em plena casa do vizinho.
Assim, ficariam Maria Pia e Ana no estúdio enquanto entre duas baforadas de seu charuto e um pigarro, o Professor perguntaria esboçando num sorriso ensaiado:
- Qual era mesmo a cançoneta que trabalhamos ontem?
- A ária de Mimi, Professor!
- Ah! Esta! Sim. E de que ópera é, Ana?
- Professor Schordatto, agora não estou lembrando bem o nome da ópera, mas sei que é Giacomo Puccini!
- Perfeito, Ana! La Bohème!
- Isso, Professor Schordatto! Estava esquecida!
E enquanto o professor dirigia-se à estante, buscando no aparador o velho violino, seu filho Giuseppe apareceria à porta sem mesmo que ele percebesse e faria um sinal para Maria Pia. Assim, os dois adolescentes desapareceriam no quintal nos fundos da casa saindo por uma lateral sem passar pela cozinha de Francesca, atarefada com o almoço e a presença de Simonetta que descascava batatas para, já devidamente paramentada num avental muito maior do que ela.
- Mas preste atenção, Simoneta! Do jeito que você descasca eu perco metade do tubérculo! Mais fino, bem mais fino!
Na sala atulhada de partituras e livros, o improvisado estúdio, apenas Ana e o Professor Schordatto permaneciam agora.
- Mas onde está Maria Pia, Ana?
- Professor, também não percebi quando ela desapareceu! Eu estava pensando em lhe perguntar sobre os versos finais da ária de Mimi.
- Mas, Ana, ainda não chegamos lá.
- Sim, Professor Schordatto. É que ontem, já em casa antes do jantar, eu folheei o libreto e encontrei um trecho que não pude compreender.
- Então, qual é sua dúvida?
- Por que Mimi está tão contente com o sol que invade sua janela se nem mesmo tem o que comer? ‘Il primo bacio dell’aprille è mio’ Como pode desfrutar a poesia do sol quando a barriga ronca de tanta fome?
- Ah! Esta é uma grande questão, bambina! Guarda! O mundo está feito de escolhas. Por que é que Simoneta prefere ficar beliscando coisas na cozinha e Maria Pia fazendo sabe-se lá o quê com Pepino naquele quintal? O que lhe parece?
- Professor Schordatto, a mim parece que fizeram a escolha errada! Eu, de minha parte, prefiro ficar aqui no estúdio aprendendo com o senhor os segredos do bel canto.
E aqui Ana respondeu ruborizando levemente, porque ela e Simonetta sabiam muito bem das peripécias de Maria Pia e Pepino naqueles poucos minutos que o intervalo do recreio permitia. Um dia, ao pularem a mureta voltando para a escola, Ana percebeu que Maria Pia estava sem nada por baixo da saia do uniforme. Pepino colecionava as calcinhas da menina metendo-as nos bolsos do macacão, não dando tempo para que ela as encontrasse, afoita que estava para partir dali correndo, esbaforida pela intransigência do sino que tocava.
- Os segredos do bel canto… Infelizmente a vida tem muitos e maiores segredos que o bel canto, minha pequena!
Os olhos de Ana faiscavam curiosos diante da presença sábia daquele professor que para ela sabia tudo o que se passava no vasto mundo. Ele abria o estojo do violino e retirando-o, afinava uma corda casualmente, olhando para Ana e sorrindo esferas por trás dos óculos. Ela, sentada como uma princesa na poltrona de veludo, ajeitava o laço de seda no cabelo liso. A saia xadrez minuciosamente espraiada no assento, como uma flor que desabrochasse no tecido da manhã.
- Ana Bela! O que você vai ser quando crescer?
- Cantora, Professor Schordatto! Uma grande artista!
- Cantora? Está segura disso?
- Tão segura quanto estas paredes, Professor Schordatto!
E para a mulher que adentrava o estúdio, seguida como uma sombra menor por Simonetta, trazendo uma bandeja com café fumegante e biscottis perfumados, ele disse:
- Franca, essa menina promete!
Olhando ao redor da sala, Francesca deu pela falta de Maria Pia e pediu que Simonetta fosse chamá-la.
- Mas Schordatto, não há uma única vez que esses dois não se percam - e sabe-se lá por quais motivos - na bagunça generalizada daquele quintal. Parece que têm uma cola ou um magneto e que não se desgrudam! É como dizia meu nono, ‘Se Ciccio não me toca, toca-me, Ciccio!’
Entram correndo pela sala Maria Pia e Simoneta. Ana observa astutamente. Corre os olhos furtivos por Francesca e o Professor Schordatto para adivinhar se eles suspeitam de alguma coisa. Mas ambos dirigem-se à mesa atulhada de partituras onde Francesca estacionou numa esquina a bandeja com seus biscoitos frescos. Nem sinal de Giuseppe aparecer.
- Vem, Ana, prove um biscotti que fiz agora mesmo!
Com um suspiro em seus entreatos, Ana levantou-se e molhou um biscotti no café preto da pequena xícara que Francesca lhe estendera.
- Uma delícia Senhora Francesca! Uma iguaria como só se encontra mesmo em Milano ou Firenze!
- Ana, o cadarço de seu sapato está desamarrado! Não vá você tropeçar e cair!
A menina abaixou-se para atar seu sapato perto de Maria Pia, não sem antes levantar levemente a saia da amiga, esta entretida agora com os quitutes de Francesca, e constatar mordaz e obviamente, que mais uma vez ela estava sem calcinha!
Ao saírem, aturdidas pelo chamar do sino que indicava o final do recreio, Ana puxou Maria Pia pelas tranças antes de atravessarem a rua e sibilou, ríspida e congelada feito uma medusa:
- Maria Pia, sua desgraçada farabuta, você vai terminar arruinando minha carreira artística que tanto promete!
Do outro lado, estacionado sobre o meio fio, um Citroen preto ocultava o olhar atento de um mecânico loiro e enorme que observou enlevado as três meninas cruzando a frente de seu veículo entre risos e fábulas. Sua malícia animal continha a mesma delicadeza dos alicates! Ana foi a única das três a perceber seu faro. E ali mesmo, entre partituras e notas dispersas, selou-se o destino final de sua triunfal carreira no bel canto que tanto prometia.