O
Cemitério
Judeu Abandonado
Zona
Norte de São Paulo. A Avenida Imirim prolonga-se num ganges
interminável
cortando dezenas de bairros. Em
quilômetros de ironia, o destino quis que ela começasse depois do
Cemitério
de Santana, inaugurado
em 1897
e terminasse antes de outro, o de Vila Nova Cachoeirinha.
Em
1926,
um
grupo de mulheres, a
Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita,
comprou um grande
lote
de
terreno na
necrópole
de Santana para inaugurar ali um Cemitério Israelita, separado
do
outro
por
um muro e com entrada principal pela Rua Nova dos Portugueses.
Guinendel
Lubinsk e
Lola
Brand,
membros
daquela
sociedade falecidas
em 1922
e 1924
antes da inauguração em 24
de maio de 1928,
foram
sepultadas no Cemitério da Consolação e
nas
lápides
de seus túmulos, custeados por duas amigas, lê-se
a mesma
inscrição
em hebraico: “Deseja-se que sua alma não seja mais encarnada”.
Encimada
em seu domo por uma estrela de seis pontas, havia
uma capela naquele cemitério
judaico,
já praticamente abandonado quando o
conheci. O sentimento de um tempo perdido para sempre permeava a
ferrugem de
seu
portão principal permanentemente fechado. Era como um segredo que no
bairro ninguém
contava porque não sabia.
Nunca
vi ninguém ali, fosse colocando flores ou mesmo algum jardineiro
cortando o mato que invadia então as pequenas alamedas encharcadas de silêncio.
Minha
avó portuguesa, com quem ia com frequência ao outro cemitério
cristão, era a única com idade e conhecimento que poderia me dizer
alguma coisa. Mas
ela também de nada sabia. Quando perguntada a respeito, sua única
resposta era: ‘É dos judeus.’
Havia
outro portão que dava acesso àquele recanto de mistérios por onde
passávamos quando ela ia a outros sepulcros de pessoas que
conhecera, o que nem sempre fazia. Era algo que até evitava quando
estava comigo, pois incondicionalmente eu pediria a ela que entrássemos
ali.
-’Mas
o que é que você quer fazer aí dentro, menino? Você por acaso conhece alguém que
foi enterrado aí?’
-’Eu
só queria ver como é...’
Por
alguns segundos ela concordava e parava sob alguma sombra que a
protegesse do sol escaldante e me deixava espiar pelas grades enquanto ela se abanava num luto interminável que molhava suas roupas negras.
Sempre era um assombro para mim... Lápides
intrigantes sem nenhuma cruz sobre elas, um espaço relativamente
pequeno repleto de ciprestes. Pouco
mais de duzentas pessoas foram
sepultadas naquele espaço onde
reinava uma paz diferente, emudecida por muitos gritos que jamais se calaram. A
capela no centro erguia-se como um forte, derrotado e
calado de orações.
Um cadeado grande
lacrava
uma velha corrente enferrujada de sonhos antigos. Que
chaves desvendariam tantos segredos? Tudo
era triste e desolado.
-’Chega!
Vamos embora que vai cair um temporal!’
Minhas
questões não eram respondidas. Caminhávamos sob seu guarda-chuva
de mãos dadas. Relâmpagos
riscavam o céu negro atrás dos muros...
-
‘Mas por que eles têm um cemitério só deles e não vêm colocar
flores?’
-
‘Não pise nas poças de água que depois não há quem tire essa
lama!’
Quando
passávamos diante do portão principal, já na nossa rua, eu via a
chuva luzindo os mármores negros e sentia medo. Talvez fosse isso o
que mais me atraía, o medo daquilo que nunca conheci.
Alguns
anos depois, voltei da escola fazendo um percurso mais longo para um
curto pecado e entrei de propósito no cemitério judaico.
Abandonado,
sua capela era então utilizada como vestiário pelos funcionários
da outra necrópole e o portão interno ficava aberto.
Era
uma conquista silenciosa entrar
naquele lugar proibido, selado desde sempre; estar
perto daquelas lápides que vi distantes por tanto tempo não
trazia respostas.
Havia
inscrições
num idioma desconhecido e diferente, sem fotografias que
identificassem os mortos, frutos secos e ramos de ciprestes caídos
sobre algumas tumbas formavam um tapete de
uma nostalgia perdida cuja
história
ninguém adivinharia.
Copiei
algumas daquelas letras num dos meus cadernos. Sem que eu soubesse,
aquela
foi
a
minha primeira lição do
alfabeto semítico. Voltei ali
mais
algumas vezes, por teimosia e curiosidade, sem qualquer medo de que
alguma pessoa me visse. Meu
sentimento era sempre o mesmo diante de um enigma que ninguém sabia
decifrar. Por
que tanta negligência?
Tomado
de coragem, numa tarde
de
inspirada ousadia, entrei
naquela capela sombria e fui
tomado
então
de
um pavor fatídico: vi
seu
interior completamente imundo, paredes
mofadas e janelas lacradas,
um cheiro forte de urina e pelo chão, fezes ressequidas de
pombos
que ali acharam
abrigo em alguns nichos.
O
estado
profanado de um espaço que algum dia talvez até
tivesse desfrutado de alguma santidade, criou
em
mim um
misto
de indignação e remorso, uma
culpa pelo que não era. Como
o abandono podia pisotear com o passar do tempo aquilo que teve um
início tão diferente? Houve
decerto um princípio onde tudo era novo e digno. Em
que ponto tudo se perdera? Onde estavam as pessoas que tinham os seus
entes queridos enterrados ali naqueles túmulos de mármore tão
preciosos, tão esquecidos? Teriam morrido também?
Assim,
eu ficava ali até que um sentimento de medo fosse tomando conta de
mim e me fizesse fugir de forma apressada e sem razão, um
visitante no mínimo insano e desastrado, é isso o que fui!
No
mesmo ano em que saí da capital para estudar num seminário no
interior de São Paulo, o cemitério judeu foi definitivamente
desapropriado por conta de total abandono. A antiga Sociedade
Beneficente não existia mais porque suas fundadoras agora estavam
ali também, vítimas do mesmo desterro, despejadas no além-túmulo.
Sonhei
com cemitérios a vida toda. E depois de um certo momento eram
lugares em que evitava entrar. E nesses sonhos sempre havia coisas a
fazer, obrigações que nunca estavam claras. Mas tinha que
cumpri-las. E nada ficou pela metade.
Mas
persistiu
a
lembrança daquele lugar abandonado que incitou tanto minha fantasia
e meus medos infundados,
repleto de ciprestes empoeirados apontando
o mesmo céu que sempre me sorriu cúmplice a tantas tempestades que
cometi.
Nas
aulas de hebraico em Jerusalém, após anos de muitos temporais, a
silhueta da capela era como um sino de saudade. Procurei no google
alguma referência e uma noite pasmei com algumas pistas e respostas
que
me aturdiram.
E
achei uma imagem sinistra da capela, já em seus últimos dias de
ruína.
As
Polacas,
prostitutas
judias que chegaram a São Paulo no início do século XIX
organizaram-se e obtiveram a concessão para serem enterradas de
acordo com sua religião naquele
lugar que não as excluiria, como as necrópoles judaicas
oficiais
e ortodoxas. O
mesmo aconteceu em Cubatão e no Rio de Janeiro.
É
nas Polacas que eu penso quando vejo qualquer cemitério em Israel,
uma
âncora
que o destino delas não conheceu, um porto onde suas rotas não
atracaram jamais. A elas foi concedido o direito de permanecerem
invisíveis, esquecidas entre a fumaça e a malícia
de
uma moral estúpida que elas reverteram em sedas e volúpia, santas
putas de um mundo imbecil que não vale delas
nem
o elástico de uma liga!