Ainda em 2019, final de Dezembro…
À noite o brilho azulado das lâmpadas de mercúrio da rua atravessa o vitrô da cozinha. A lavanderia de Dona Virgínia tinha o mesmo tipo de vidros e as luzes dos postes de mercúrio no grande terreno vazio ao lado de sua horta também trespassavam nostalgicamente as janelas, anunciando em néon que tinha anoitecido em Santo André.
Por isso um dos meus horários preferidos para cozinhar é à noite. A memória silenciosa e nostálgica me acompanha e paro de vez em quando apenas para apreciar catatônico o que mais ninguém pode ver pelas janelas opacas. Assim, há uma cumplicidade inerente entre eu e essas paredes, distantes de tudo o que um dia foi minha infância.
Algumas coisas preparo apenas para lembrar o sabor de sua comida e ainda que me faltem ítens imprescindíveis, a bondade daquela mulher continua dobrando sinos nas lembranças e me despertando para sempre dentro de seu colo de amor.
...
O som dos trens nos dormentes que ouço desde a sala e a cozinha também me colocam sobre trilhos ligando minha vida sem estações. Era de trem que íamos a Santo André aos domingos, onde meu pai tinha aquele casal de amigos desde a época em que minha mãe ainda vivia e que assiduamente costumavam visitar.
Entrar naquela casa era penetrar um passado que não me pertencera e que de certa forma eu poderia fazer parte, ainda que pela breve duração de um suspiro; um sortilégio subitamente abria uma fresta entre dois mundos decantados em cachaça, carteado e vinho barato. Invariavelmente havia estórias sobre meu irmão e minha mãe que eles contavam com lágrimas nos olhos.
Meu pai nunca emitia uma palavra. Nada. Olhava seu rosto triste, tentando adivinhar sentimentos que não imprimiam pistas. Olhos baixos verteriam uma lágrima que ele logo ocultaria, virando-se para o outro lado e acendendo um cigarro a título de disfarce. Jamais ouvi de sua boca os nomes de meu irmão ou minha mãe proferidos de que maneira fosse. Permaneceriam atados em sua garganta, cansada de viver seu nó de solidão? Tudo o que soube deles foi através de outras pessoas.
E a reconstrução do que não vivi também passou a fazer parte da minha vida, dos meus óculos para enxergar através do tempo e reescrever o que nunca senti diretamente. Talvez para preencher tantas lacunas...
Aquela casa recendia a presépios. Antes de ir para a América eu quis me despedir daquele lugar. Tinha dúvidas e pressentia que talvez não voltasse mais ao Brasil, o que realmente se mostrou possível, porém, o rumo que a escola tomou me fez retornar para continuar buscando minha própria verdade.
Um amigo me levou até Santo André certo dia. Parou o carro do outro lado da rua. Um grande portão de madeira ocultava toda a pequena vila de casas onde Dona Virgínia e Seu José moraram. Atravessamos. E eis que o portão se abre quando um senhor desconhecido está prestes a sair. Peço permissão para entrar e ver a casa de perto. Por um milagre ele consente sem nada questionar.
Um choque. Todas as casas da vila estão demolidas. Mas a casa de Dona Virgínia ainda permanece. Do grande corredor que levava à sua cozinha só restam os pilares. Caminhamos em direção à porta e percebo entreaberta a janela da pequena sala onde ela armava seu presépio todos os anos. Olho para dentro e respiro fundo, tentando perseguir o perfume de alecrim e ervas que adejavam naquele cômodo. Nada mais resta nos escombros. Só meu coração ainda é o mesmo. E ele ainda pulsa por todos os que se foram.
Dos trens e de seus trilhos também surgiu no horizonte dos meus mapas numa certa noite, a estação de Araraquara quando vim para o seminário.
E da academia ouvi o murmúrio de locomotivas partindo ondes e quandos. Uma porta que a Maga jamais abria dava para uma varanda desativada com vista para a estação…
Desde que comecei a escrever tudo isso, movido ainda pelas luzes de mercúrio, não tinha intenção de que fosse transformar o conteúdo numa carta endereçada a você, assim como também não me decidira a viajar para o Brasil.
Vivi nos últimos meses a implosão de todos os meus abismos. Toquei fronteiras de mim que até então nem mesmo em delírios atravessara.
Criei gosto pelo escafandro no inferno purgando plenos paraísos. E apesar da claustrofobia inerente às profundezas da carne, a ânsia pela aventura foi maior que o medo e o terror dos precipícios. E me deixei perder nesse denso labirinto porque queria encontrar as pistas, minhas próprias pegadas com as quais não atinara antes, fios de ariadne que ligariam as perguntas em respostas silenciosas.
Foi como perder alguns ingredientes ao longo da diáspora e constatar que a fome era meu único tempero. E assim, cozinhei a mim mesmo um verão inteiro. Ao ponto.
01 Janeiro 2020
A gente não pode perder o gosto pelo sublime. Muitas vezes é só uma questão de ajuste de botões, o que mesmo assim pode tomar um tempo imensurável. Ainda que não se possua prazos nem scripts, o prazer das entrelinhas subentendidas transbordará incondicionalmente num certo momento, emergindo o texto do que somos no teatro do tempo.
4 Janeiro
Assim os rascunhos têm surgido: aos fragmentos. E assim vou cumprindo a exposição de retalhos, sem intuito ou pressa de passar tudo a limpo, por reverência aos sons soprados em forma de palavras.
Com frequência não é clara a forma de expressão. Todavia ela permeia um certo estado, uma predisposição que não pertence à fala coloquial nem ao fluxo de pensamentos. Artes de pitonisa. Criar é um oráculo cujo fenômeno desconheço. Mas sinto plenamente o calor de seu circuito abrindo veios, o vapor de mistérios surgindo entre pedras, a embriaguês epiléptica de um transe a mais se revelando e me absorvendo… Depois, mais um pássaro é solto na amplitude do céu sem fronteiras.
E sua raiz é vida, em seu mais simples e ordinário sentido. Assim como as panelas, que sempre foram conteúdos plenos de poesia. Todos os ensinamentos apontam o mais simples como expressão da verdade. Por isso, dogmas jamais ecoaram em minhas entranhas.
5 Janeiro
Mohaned ligou agora à tarde me convidando para comer shawarma com ele em Akko. Ele tinha algumas coisas a fazer por aqui. Mas declinei e disse que tinha um trabalho a fazer no computador. Não perdi meu amor por eles mas não devo lealdade. Ainda assim conversamos um pouco por telefone e como sempre ele desfiou seu rosário de queixas. Sinto enjoos de pensar naquele lugar. É como estar livre de um campo de concentração. No entanto, a experiência em compreensão social que esse restaurante me possibilitou é profunda.
6 Janeiro
Estava muito frio ontem e não quis sair de casa. Todos os domingos tenho um compromisso com Antonio pelo whatsapp, quando fazemos uma meditação longa que toma pelo menos uma hora de prática. Ele veio a Israel em 2018 para fazer aquele que, penso, foi o último retiro que Dan ministrou por aqui. Antonio fez esforços descomunais para essa viagem.
Tem chovido torrencialmente desde o natal. Há muitos dias não saio à rua. Continuo ocupado em meu silêncio.
Todos esses meses de reclusão foram primordiais no sentido de olhar livremente através do tempo, de reconhecer a vibração do húmus em seu diálogo com as raízes, de contemplar a criação de um poema martelando vulcanos pelos frisos e ver surgir do meio dele uma outra poesia que faz parte da mesma gestação mas que urge outras vias respiratórias. Prana foi assim
Quando brota, seja uma flor, um escrito ou um novo dia, é porque caminhos originais abriram-se através do destino, rotas virgens foram criadas pelo breu da terra até avistar um sol latejante e que finalmente, algo pode agora reverenciar, pulsando. Viver não tem marcação de palco. O legítimo é nevrálgico, está exposto sem qualquer defesa ou referência. É o preço do sublime. Tudo mais, sombras periféricas por onde tateamos neblinas.
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