domingo, 29 de maio de 2016

Virgínia & José


 Virgínia & José

A tina de tremoços ficava curtindo na salmoura perto do tanque, numa pequena lavanderia improvisada que também dava acesso ao único banheiro da casa. Do vaso sanitário exalava incondicionalmente o cheiro ácido da urina que permanecia impregnando a louça da privada para a qual eles não achavam necessário o uso imediato da descarga.
Na grande cozinha, apesar do aroma azedo dos tremoços que seriam comidos mais tarde entre gritos no carteado e cachaça de alambique, o cheiro maravilhoso de uma comida fresca repercutia sonhos em toda vizinhança. Eram ali nossos passeios invariáveis aos domingos, se houvesse algum para descansar a longa semana de trabalho de meu pai, Manuel Teixeira – um português, assim como eles – mas principalmente cansado, só e triste.
Ali ele tinha suas memórias. Aquela grande casa fora um abrigo de calor em todos os momentos de sua vida de casado.
Virgínia e José fugiram para Santo André por volta dos anos quarenta. Ela, por conta de um casamento mal feito e mal sucedido. E José que imigrara da Madeira para o Brasil pela vergonha de ter a mulher envolvida com o padeiro, seu patrão. De mágoa, jamais ele voltou a exercer a profissão, nem mesmo para assar o pão que o diabo amassou.
Não se sabe como se conheceram. Talvez, em certo ponto de suas vidas, viram-se réus da mesma desgraça e quiseram com justiça a redenção de suas cruzes deixando para trás todos os vampiros. Na época em que chegaram, Santo André era um lugar pouco habitado, com chácaras e sítios onde se podia ficar distante da comunidade madeirense que procurava então matá-los por adultério. Todos portugueses cristãos, praticantes, diga-se de passagem.
Meu pai e minha mãe eram alguns dos poucos amigos que sabiam onde eles estavam. Virgínia e Izabel eram amigas desde a juventude e minha mãe a incentivou para que deixasse o marido e fosse viver loucamente sua paixão. Jamais perderam o contato. Virgínia e José jamais se casaram. Tiveram um único filho. Um homem digno chamado Armando.
Meus pais não frequentavam a casa de ninguém. Meu irmão tinha debilidade mental e epilepsia. A medicina da época era estreita, assim como o conhecimento deles a respeito de um tratamento que talvez pudesse beneficiar Nelson. Jamais pensaram em ter filhos novamente.
Por muitos anos frequentaram aquela casa aos domingos. Era um lugar onde Nelson se sentia feliz e o casal de amigos o tratava com carinho e atenção. Talvez aquele lugar fosse para ele o mesmo paraíso que muitos anos depois seria para mim.
Aos quarenta e dois anos Izabel teve um câncer num ovário e sofreu uma cirurgia para sua retirada. Bem sucedida a operação, os médicos lhe disseram que seria impossível que engravidasse, tanto pela idade quanto pela condição de seu aparelho genital.
Foi assim que nasci.
Mas o destino tratou de dar seu troco em moedas de sangue muito rápido. Izabel desenvolveu uma metástase e o câncer afetou seu sangue. Uma leucemia fortíssima debilitou sua coragem logo após meu nascimento. Assim, ela sobreviveu mais dois anos e nove meses. Nelson foi internado no Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha e veio a falecer aos vinte e um anos, nove meses depois da mãe.
Quando foram a Santo André pela última vez, já sem Nelson e comigo no colo, José e Virgínia vieram ao portão para vê-los partirem, como sempre faziam. Os quatro choraram. Sabiam todos que aquela etapa da vida estava dando seu aceno final. Página virada, Izabel jamais retornaria para rever Virgínia. Também jamais recobraria plenamente os sentidos, entorpecidos por injeções crônicas de morfina para aplacar a dor de existir dobrado, um filho no hospício e outro que mal tivera tempo de alimentar com seu leite poluído. 



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