Virgínia & José
A
tina de tremoços ficava curtindo na salmoura perto do tanque, numa
pequena lavanderia improvisada que também dava acesso ao único
banheiro da casa. Do vaso sanitário exalava incondicionalmente o
cheiro ácido da urina que permanecia impregnando a louça da privada
para a qual eles não achavam necessário o uso imediato da descarga.
Na
grande cozinha, apesar do aroma azedo dos tremoços que seriam
comidos mais tarde entre gritos no carteado e cachaça de alambique,
o cheiro maravilhoso de uma comida fresca repercutia sonhos em toda
vizinhança. Eram ali nossos passeios invariáveis aos domingos, se
houvesse algum para descansar a longa semana de trabalho de meu pai, Manuel Teixeira –
um português, assim como eles – mas principalmente cansado, só e
triste.
Ali
ele tinha suas memórias. Aquela grande casa fora um abrigo de calor
em todos os momentos de sua vida de casado.
Virgínia
e José fugiram para Santo André por volta dos anos quarenta. Ela,
por conta de um casamento mal feito e mal sucedido. E José que
imigrara da Madeira para o Brasil pela vergonha de ter a mulher
envolvida com o padeiro, seu patrão. De mágoa, jamais ele voltou a
exercer a profissão, nem mesmo para assar o pão que o diabo amassou.
Não
se sabe como se conheceram. Talvez, em certo ponto de suas
vidas, viram-se réus da mesma desgraça e quiseram com
justiça a redenção de suas cruzes deixando para trás todos os
vampiros. Na época em que chegaram, Santo André era um lugar pouco
habitado, com chácaras e sítios onde se podia ficar distante da
comunidade madeirense que procurava então matá-los por adultério.
Todos portugueses cristãos, praticantes, diga-se de passagem.
Meu
pai e minha mãe eram alguns dos poucos amigos que sabiam onde eles
estavam. Virgínia e Izabel eram amigas desde a juventude e minha mãe
a incentivou para que deixasse o marido e fosse viver loucamente sua
paixão. Jamais perderam o contato. Virgínia e José jamais se
casaram. Tiveram um único filho. Um homem digno chamado Armando.
Meus
pais não frequentavam a casa de ninguém. Meu irmão tinha debilidade mental e epilepsia. A medicina da época era estreita,
assim como o conhecimento deles a respeito de um tratamento que talvez pudesse beneficiar Nelson. Jamais pensaram em ter filhos novamente.
Por
muitos anos frequentaram aquela casa aos domingos. Era um lugar
onde Nelson se sentia feliz e o casal de amigos o tratava com carinho
e atenção. Talvez aquele lugar fosse para ele o mesmo paraíso que muitos anos depois seria para mim.
Aos
quarenta e dois anos Izabel teve um câncer num ovário e sofreu uma
cirurgia para sua retirada. Bem sucedida a operação, os médicos
lhe disseram que seria impossível que engravidasse, tanto pela idade
quanto pela condição de seu aparelho genital.
Foi
assim que nasci.
Mas
o destino tratou de dar seu troco em moedas de sangue muito rápido.
Izabel desenvolveu uma metástase e o câncer afetou seu sangue. Uma
leucemia fortíssima debilitou sua coragem logo após meu nascimento.
Assim, ela sobreviveu mais dois anos e nove meses. Nelson foi
internado no Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha e veio a
falecer aos vinte e um anos, nove meses depois da mãe.
Quando foram a Santo André pela última vez, já sem Nelson e comigo
no colo, José e Virgínia vieram ao portão para vê-los partirem,
como sempre faziam. Os quatro choraram. Sabiam todos que aquela etapa
da vida estava dando seu aceno final. Página virada, Izabel jamais retornaria para
rever Virgínia. Também jamais recobraria plenamente os sentidos, entorpecidos por injeções crônicas de morfina para aplacar a dor de existir
dobrado, um filho no hospício e outro que mal tivera tempo de alimentar com seu leite poluído.
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