sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Rua dos Timoneiros


O russo abria a porta da oficina que dava para nosso quintal e mergulhava suas ferramentas no grande tambor de água que tínhamos ali. Seus olhos claros sempre me olhavam de esguelha, coroando um sorriso mocho onde brilhava o mistério de um pré-molar de ouro emoldurado pela barba rala sempre por fazer. Então, como de costume, ele regurgitaria algo em sua língua disgramada e desapareceria incondicionalmente pela mesma porta, revelando agora a calvície rosada de um vulto estranho numa última cena, deixando atrás de si o rastro pestilento de um cheiro de ferrugem no ar.
Jamais soube seu nome. Minha mãe pernambucana, Ivolete de Alencar, a quem pude reencontrar anos depois, nem mesmo da clara pessoa dele se lembrava. Mas o cheiro de ferro que sempre associei à sua imagem me fez guardar dele impressões hoje não mais perceptíveis; transformaram-se por sua vez em memórias de sensações remotas e que só estiveram disponíveis no meu repertório de lembranças até certo momento de pausa entre neblinas.
No pequeno sobrado havia um quarto mobiliado com móveis que tinham pertencido a meu irmão para que meu pai dormisse ali quando quisesse. Ele jamais o fez. Era um cômodo ausente em seu propósito de esfinge num deserto sem pirâmides. Entrar nele era adentrar um lugar impecável preparado intencionalmente para fantasmas que jamais apareciam.
Às vezes ele vinha para me levar ao barbeiro ou trazer algum presente. Outras vezes íamos até o bar que ele tinha na Ponte da Casa Verde e lá alguém sempre enchia meus bolsos com chocolates sem que meu pai visse. Certa vez, por um furo no forro dos bolsos, os chocolates escorregaram pelas pernas e alguns se espalharam pelo chão. Não me recordo do final dessa passagem. Mas a decepção pelo doce crime espalhado no piso me fez reparar no vinco perfeito das minhas calças apontando a delação.
A Rua dos Timoneiros trouxe consigo uma rota de momentos em que experimentei mares de profundezas onde ainda procuro navegar, mesmo que as percepções desse lugar não estejam mais frescas e ativas emocionalmente. É como se restasse apenas a memória da memória. Os sentidos conservam no vinho de sua recordação táctil as coisas corrosivas que azedaram em vinagre ácido para o tempo do coração.
Sonhei certa vez que o bicho papão estava sentado na porta de casa impedindo minha entrada. Do portão percebi que ele era feito do mesmo material das capas de chuva que então se usava. E o mais notável foi verificar que era oco por dentro. Quando toquei sua cabeça, minha coragem de criança fez com ele perdesse sua forma, que se desinflou igual a um balão abandonado num parque úmido.
Rolei as escadas daquele sobrado num passo em falso e tive várias escoriações pelo corpo. Sentado no aparador do armário da cozinha, Ivolete passou salmoura nos meus hematomas enquanto eu choramingava arrependido. Lembro que na mesa havia brigadeiros de doce-de-abóbora que ela tivera o capricho de espetar um a um com cravos-da-índia. Criei mais tarde uma verdadeira obsessão por esse doce que o tempo me fez aprimorar com especiarias cada vez mais exóticas. O aroma de aconchego com que ele inebriava toda a casa era mais sedutor do que propriamente comê-lo. Depois, tudo em mim foi nada mais que uma busca de sedução.
Ivolete trabalhou com minha mãe Izabel arrematando pilhas de blusas para uma fábrica que contratava mão-de-obra barata para o acabamento. Eram vizinhas e amigas. Ouviam Dalva de Oliveira no rádio enquanto costuravam. Veio de Pernambuco para morar com uma de suas irmãs que estava em São Paulo e por pura incompatibilidade fraterna muito cedo ela veio morar com a gente. O fado armando suas redes...
Quando nasci e minha mãe desenvolveu metástase no sangue, ficando logo impossibilitada de levar uma vida normal, Ivolete, morena cor de canela, foi minha cura provisória para um destino já sem tempero. Em seus delírios de morfina, Izabel me oferecia seu colo dizendo: 'Vem com a vovó!' Não teve tempo de ser minha mãe. Ficou quase três anos presa ao útero da cama até nascer finalmente para a vida de sua morte lancinante. Foi então que tudo escureceu.
Antes, ela fizera meu pai jurar ajoelhado na cabeceira de seu leito que quando ela morresse ele me deixaria com Ivolete. Ela temia que o ódio moral que a família dele lhe devotava de alguma forma me atingisse de tabela, coisa que inevitavelmente aconteceu. Promessas em leitos de morte são passos em falso por escadas que nunca sobem.
Era uma vez meu pai vindo me buscar para ir ao barbeiro e nunca mais me trazendo de volta. Naquele dia cortaram meu cabelo e meu cordão umbilical pela segunda vez. Nada mais foi o mesmo. Até o sentimento que eu tinha sobre meu ser e o que eu era lá dentro de mim, mudou. Assim eu me tornei um nômade e a viagem foi desde então meu mote inevitável. Fazer o quê? Ciganagem. Sinergia. Ferramentas fumegantes esfriando em chiados de água fria. Fórceps.




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